*Texto enviado no dia 19 de maio de 2024.
O que há de melhor em ser um habitante de Porto Alegre? Em diversos momentos me fiz essa pergunta, desde que me mudei para a capital. Costumava me dividir entre duas respostas: as salas de cinema e a orla do Guaíba (incluindo o parque Marinha). Acabei percebendo que, dependendo da programação, às vezes passava semanas inteiras sem ir ao cinema, ao passo que frequentar a orla e o Marinha é um hábito muito mais constante, praticamente diário, que me enche de gosto pela vida. Sempre sinto algo assim como uma bênção vendo o rio (ou lago) surgir amplo à minha frente, alargando o horizonte, soprando uma brisa refrescante, cintilando ao sol, mudando de tom diante das cores do poente, ou acolhendo generosamente a saraivada de gotas de chuva.
Um dos últimos filmes que assisti no cinema antes da enchente foi “Nada será como antes”, documentário sobre o Clube da Esquina. Relaciono a indizível felicidade que o Guaíba me proporciona com umas das músicas/letras mais belas que conheço, “Um gosto de sol”:
Alguém que vi de passagem
Numa cidade estrangeira
Lembrou os sonhos que eu tinha
E esqueci sobre a mesa
Como uma pera se esquece
Dormindo numa fruteira
Como adormece o rio
Sonhando na carne da pera
Fugindo da enchente no Menino Deus, penso em tudo o que o rio/lago me deu, na minha dívida de gratidão infinita por incontáveis momentos sublimes, de bem-estar, de alegria, de deslumbramento, de tranquilidade, de paz; não ouso reclamar dele agora que avança pela minha rua, como se quisesse ampliar ainda mais seus horizontes, como se viesse até minha casa para me buscar. Tudo tem o seu lado iluminado e o seu lado sombrio, é o que me consola.
Minha relação pessoal com o rio/lago é apenas uma gota num oceano de pessoas, é claro; a destruição, o drama e o sofrimento se impõem na cidade e no estado. Não lembro de ter visto tanta gente nas ruas do bairro quanto após o anúncio de que a casa de bombas da região estava sendo desativada. Uns perplexos e sem rumo, outros se deslocando apressadamente como baratas tontas, para todos os lados; carros na contramão, pessoas saindo às pressas abraçadas nos seus pets; o supermercado fechando repentinamente os portões, em plena tarde; a energia elétrica cortada; o zumbido quase incessante de helicópteros sobrevoando a cidade. Respirei fundo, tentando não ser levado pela onda de pânico. A enchente ainda estava a uma quadra de casa, a água avançava devagar, não havia motivo para sair correndo.
Horas depois, na esquina acima (Botafogo com Múcio Teixeira), já havia sido montado um QG – no jargão dos voluntários -, uma área coberta disponibilizando lanches, água e profissionais da saúde, de onde partiam botes de resgate bairro adentro, dia e noite.
Dois dias depois, parado no portão do meu prédio diante do exato limite da enchente, que continuava avançando lentamente, observava as bocas-de-lobo vertendo água na parte ainda seca da rua, projetava o cenário dos dias seguintes diante da previsão de muita chuva, lidando com a perspectiva de ficar ilhado, sem luz e água, sem comunicação, sem notícias; parado no portão de um prédio em que permaneciam apenas uns quatro ou cinco moradores, dos quarenta e oito apartamentos que formam o condomínio. Em certo momento me pego pensando em Thoreau vivendo solitário às margens do lago Walden, livro que li com tanto gosto uns quinze anos atrás. Procuro controlar uma certa tendência misantrópica que me assalta. O Guaíba não é o Walden, tampouco eu tenho a força espiritual do Thoreau, e as circunstâncias são completamente distintas. Procuro controlar também minha tendência a relacionar toda a realidade com os livros que li.
Àquela altura, permanecer no prédio ainda me parecia um desafio viável de ser encarado – até que duas visões me fizeram mudar de ideia, num intervalo de poucas horas: primeiro um veículo blindado anfíbio do exército passando na esquina, já completamente alagada; depois o olhar assustado de um gato, resgatado de bote junto com a sua tutora, desembarcados exatamente na frente do meu portão.
Não sei explicar por que precisamente essas duas visões se impuseram com tanta força sobre mim, se tantas coisas piores e mais impressionantes chegavam através das notícias e dos relatos. Talvez porque um fosse a imagem de toneladas de força bruta capaz de avançar sobre qualquer obstáculo, e outro o retrato do que há de mais frágil e vulnerável; de um lado o excesso mais autossuficiente, do outro a falta mais impotente; ambos surgindo diante de mim como epifanias, como polos opostos de forças que travavam um combate dentro de mim, e que acabei por interpretar como um sinal de que era chegada a hora de sair, de procurar um lugar mais seguro.
Voltei para o quarto que não habitava há treze anos, em Novo Hamburgo. O deslocamento que estou acostumado a fazer em 1 hora de trem, ao custo de R$ 4,50, agora levava mais de 4 horas e quase 85 vezes o valor, em transporte individual, percorrendo as poucas rodovias ainda disponíveis. O mesmo se repetiria na volta, uma semana depois, quando a enchente recuara no Menino Deus e luz e água estavam restabelecidas. O prédio não fora atingido, a inundação havia parado no portão, naquele portão que serviu de moldura para o blindado e para o gato que não saem da minha cabeça.
No momento em que escrevo, ouço um carro de som anunciando que, nas próximas horas, um caminhão da Prefeitura vai passar recolhendo móveis e eletrodomésticos inutilizados pela enchente. Circulo pelas ruas enlameadas dos arredores, oprimido pelo cheiro de peixe morto e impressionado com a quantidade de entulhos à espera da coleta – mesas, cadeiras, armários, colchões, coisas em pedaços.
De repente, não sei bem por qual motivo, me sinto um estrangeiro na Terra, que viu de passagem um blindado e o olhar de um gato, imagens ainda absurdas na minha tentativa de encontrar um sentido nessa Porto Alegre que agora parece muito distante de um gosto de sol.
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