Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Diário da Enchente

Inspirado no Diário da Pandemia – uma pessoa por dia, um dia de cada vez, iniciativa de Julia Dantas – o Diário da Enchente reúne relatos sobre a maior tragédia climática do Rio Grande do Sul. Editado por Luís Felipe dos Santos (@lfds85) e Raphaela Flores (@rapha_donaflor). Foto: Isabelle Rieger.

Trama anda aí, por Clarissa Silveira

*Texto enviado em 19 de maio

20 dias de duração da maior tragédia climática do RS. Estou no litoral e bordo feito aranha. “Trama anda aí” disse a mestra bordadeira. 

Eu estava hospedando duas fotógrafas, uma de Salvador/BA e outra de Porto Alegre/RS, para uma residência artística no Sítio Libélula onde vivo em Rolante/RS.

Na madrugada de terça pra quarta-feira dia 1o de maio, acordei as 3h da manhã com um estrondo longo, que parecia um trovão vindo da terra, de baixo pra cima. Pensei: deslizou o São Cristóvão… (uma parte da estrada que já havia deslizado uma parte nos ciclones de setembro de 2023).

Ao acordar pela manhã, estávamos sem energia elétrica. Fomos até o Arroio Boa Esperança, próximo de casa e ele havia saído consideravelmente da calha. Numa estiada da chuva, fomos no centro da localidade saber quando voltaria a luz. Na estrada havia muita água descendo dos morros, em pontos onde eu nunca tinha visto água antes.  

Quando chegamos na venda que tem gerador, muitos moradores ali acessando a Internet, entra a mensagem: oi saiam daí, venham embora, não vai voltar a luz, vai dar tempestade direto até sexta, a estrada desabou… Vejo o post dos Bombeiros Voluntários e Prefeitura de Rolante solicitando a imediata evacuação de áreas de risco. Voltamos às pressas para o Sítio recolher pertences, enquanto anoitecia e voltava a chover. 

Subimos novamente para o mercado, onde amigos – ou seriam anjos da guarda? – nos esperavam para guiar por uma estrada local, pouquíssimo usada e bem perigosa e íngreme, com mato alto e muitas curvas. Ainda bem que eu sei dirigir nessas bandas, pensei.  Foram cerca de 20km que pareceram uma eternidade, para passar pela única ponte ainda sem transborde e chegar no centro de Rolante. Ali os bombeiros estavam alertando a população com sirenes para evacuar as áreas e interditando onde já se avistava o Rio Areia fora da calha. Pedi ao bombeiro: preciso ir pra Porto Alegre. Com olhos arregalados, respondeu: “vai agora! Pela RS 474 e Freeway porque por Novo Hamburgo já não dá pra passar… a coisa tá feia”

A rótula da cuqueira na saída da cidade já estava coberta de água, e não tive dúvida em passar por cima do cordão e ir pela água mais rasa, na contramão. Oxalá parou de chover. No trajeto ao largo da região dos Rios dos Sinos e Gravataí dava pra ver as tempestades, muitos raios, parecia filme de Apocalipse. Chegamos em PoA, conseguimos!

Logo pela manhã, as primeiras imagens da maior enchente da história de Rolante, com aproximadamente dois metros de altura em diversos pontos. Passamos o dia derivando pelo Centro Histórico e quando fomos ver o Rio Guaíba, as comportas já estavam fechadas. Compramos passagem antecipada pra artista residente, que embarcou tristonha pela interrupção abrupta de sua residência artística. E eu só dizia, fica bem, nós conseguimos!

Não demorou muito para toda aquela água das bacias dos Rios dos Sinos, Caí e Taquari chegarem ao Guaíba, e quando o dique estourou e fechou a penúltima saída de Porto Alegre no domingo, decidi vir com a família para o Litoral. Mais uma vez, conseguimos!

Hoje, 20 dias de duração da maior tragédia climática do RS. A estrada que leva ao sitio permanece interditada, com deslizamentos em vários pontos. Estou no litoral e bordo feito aranha. “Trama anda aí” disse a mestra bordadeira.

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