Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Diário da Enchente

Inspirado no Diário da Pandemia – uma pessoa por dia, um dia de cada vez, iniciativa de Julia Dantas – o Diário da Enchente reúne relatos sobre a maior tragédia climática do Rio Grande do Sul. Editado por Luís Felipe dos Santos (@lfds85) e Raphaela Flores (@rapha_donaflor). Foto: Isabelle Rieger.

Segredos familiares inundados, por Nora Prado

Em meio a calamidade absoluta na qual estamos literalmente submersos, uma notícia chocante tem circulado nos últimos dias. Parentes das vítimas das enchentes estão abusando de mulheres, adolescentes, meninas e meninos, filhos, netos ou sobrinhos. O que acontecia entre quatro paredes, escondido dos olhos da sociedade, agora veio abaixo com o confinamento dentro dos abrigos.

Os estupros têm sido sistemáticos e muitos deles foram denunciados com a consequente prisão dos abusadores. Até o momento onze deles foram presos. Por esta razão alguns novos abrigos foram montados, as pressas, para acolher mães e filhos, preservando a família de mais este tormento. Não bastasse a tragédia de perder a própria casa, entes queridos e toda a identidade afetiva, que um evento extremo como esse provoca, as pessoas ainda precisam se defender de supostos amigos e familiares que seguem se aproveitando de sua vulnerabilidade. Algo completamente absurdo e devastador. Não bastasse o trauma da enchente, ainda há o trauma do estupro. Um problema gravíssimo que precisará se enfrentado de frente e com muita firmeza pelas autoridades.

Isto porque é preciso levar em conta que esta situação dos desabrigados alojados, momentaneamente, nos abrigos se estenderá por muito tempo, afinal não se reconstrói casas e cidades sem planejamento, nem da noite para o dia. Do que se deduz que a convivência entre milhares de famílias dentro dos abrigos, pelo estado inteiro, será uma realidade normalizada nos próximos meses. Mais uma razão para se cuidar dessa questão com seriedade e de modo intermitente, afinal, o estuprador reincide no estupro, não apenas como forma de prazer e autossatisfação, mas também como ritual. Ora, um ritual costuma ser repetido, incansavelmente, é um comportamento sistemático do abusador. Impedir que isso se repita é tarefa primordial das autoridades. É necessário separar fisicamente os estupradores das suas vítimas. Na maioria das vezes conhecida do agressor e do menor de idade sem condições de se defender à altura.

Ainda no âmbito dos abrigos para esse enorme contingente humano, será necessária uma força tarefa de redistribuição destes grupos em função de proximidade do colégio, creche e trabalho para facilitar a vida das famílias. Uma nova logística para atender diversas necessidades e de como se mover neste novo cenário, sem prejuízo para a saúde e integridade das pessoas. Será preciso pensar em formas de rotinas comunitárias, como por exemplo, cozinhas próximas ou nos próprios abrigos, lavanderias e atividades de lazer para todas as idades. Reinventar uma rotina produtiva que contemple as diferentes idades e interesses. Comitês específicos de cada unidade e um gerenciamento equilibrado das diversas funções restabelecidas. Se já é difícil conviver em sociedade, mesmo cada um morando na sua casa, imagine conviver com desconhecidos, corpo a corpo, sem intimidade resguardada, separados apenas por exíguos espaços entre os colchões em ginásios áridos. Há que se ter toda uma flexibilidade e jogo de cintura para garantir a harmonia e o bem-estar, tão necessários para recomeçar a vida.

Outra questão para ser enfrentada com disposição e carinho será o fator da saúde emocional, uma vez que milhares de pessoas foram resgatadas em situação de perigo extremo enfrentando frio, fome e medo intenso. Quantas crianças, adolescentes, adultos e idosos passarão por depressão ou outros distúrbios emocionais graves depois de vivenciar um trauma desta natureza? Será urgente o Estado promover políticas pública de assistência nesse sentido para atender uma imensa demanda por parte das vítimas desta catástrofe.

Se pensar que a nossa casa, o nosso lar, além de ser a referência física, espacial, geográfica e territorial que nos confere identidade, é também o espaço emocional de acolhimento, refúgio, lugar de liberdade e intimidade que garantem o nosso sustento e nos proporcionam descanso e conforto. Perder isso significa ficar à deriva, sem a âncora e cordão umbilical que nos dão o fundamental “sentido de pertencimento”. Quantos não sentirão saudades de casa, do antigo lar para o qual muitos jamais retornarão? É desalentador constatar isso. Por outro lado, muitas destas crianças e jovens que eram abusadas dentro da própria casa pelo pai, padrasto, tio, avô ou pelo amigo da família tem um sentimento oposto. Ao se livrar da casa, e, por extensão, da “maldição da casa”, com o seu algoz ali dentro, ela se livra dessa prisão secreta. Dessa bolha funesta.

Quantas famílias conseguirão se manter sadias depois deste evento perturbador? Somente o tempo dirá. Mas até lá, é necessário que o Estado e os municípios planejem estratégias logísticas e de acolhimento para estas sérias demandas sob pena de cultivar uma população abatida, ressentida e desorientada. Que a gente possa cobrar boas práticas de políticas públicas em favor dos seres humanos e pela sua saúde mental.

Que as piores das violências, a doméstica e o incesto, que agridem mulheres, adolescentes e crianças, como o triste caso dos estupradores, tenham a devida atenção do Estado. Afinal, a invisibilidade do incesto ou da violência contra a mulher naufragou por conta da enchente e o segredo de família transbordou. O segredo veio à tona expondo o crime, a vítima e o criminoso. Que possamos enfrentar tamanhos desafios com o pulso firme e a lucidez necessária. Que possamos drenar todas a dores e traumas desse momento terrível com respeito, ternura e solidariedade.

Porto Alegre, 10 de maio de 2024.

 

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