Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Diário da Enchente

Inspirado no Diário da Pandemia – uma pessoa por dia, um dia de cada vez, iniciativa de Julia Dantas – o Diário da Enchente reúne relatos sobre a maior tragédia climática do Rio Grande do Sul. Editado por Luís Felipe dos Santos (@lfds85) e Raphaela Flores (@rapha_donaflor). Foto: Isabelle Rieger.

Quantos restos restam de nós?, por Cissa Castro

*Texto enviado no dia 20 de maio de 2024.

Se fosse 2020, diria que preciso de ar para escrever estas linhas.
Se fosse diante de um governo negacionista, diria que preciso de dados para escrever estas linhas.

Sendo na tão recente enchente histórica vivenciada pelo meu estado, poderia dizer que preciso de casa, roupa, sol e água potável para escrever estas linhas.

Nada disso me faltou, fui acometida por um mal de nascença: o privilégio — não se enganem, os pobres e periféricos estão mais suscetíveis aos desastres advindos da
natureza financiados pelo Estado.

Sou branca, classe média, heterossexual, excluo a palavra mulher aqui, pois na sociedade machista, misógina, patriarcal e falocêntrica em que vivemos não se encontra
aí o meu privilégio. Meninas e mulheres, desprotegidas da chuva, precisam se proteger dos homens nos abrigos que lhe oferecem o “conforto” de um lar.

Se fosse nos tempos logo após 1984 (ano do meu nascimento), ainda que não pudesse escrever esse texto por falta de capacidade cognitiva, o faria com um olhar renovador. Filha de uma democracia recém restituída, havia uma nova história a frente.

Bem verdade que vivenciei a era Collor ainda que muito pequena. Meus pais, atentos à
necessidade de luta e da importância de se manter o sonho infantil, me criaram protegida das durezas às quais as crianças não deveriam ser submetidas, mas atenta ao senso de humanidade e justiça.

Se fosse nos tempos de 1984, escreveria este texto com a esperança de criança.

É 2024, beiro os 40 anos e muito da criança já se foi. Ao contrário da alcunha que alguns me reservam, pessimista, rebato me considerando uma pessoa excessivamente realista. E nesse excesso de realidade vejo que a vida não é boa, ou não é justa, pelo menos para a maioria. E digo isso me pautando por um senso de coletividade distorcida; ainda que as ajudas sejam muitas e de todos os lugares, me parecem insuficientes diante daquilo que os detentores do poder negaram a um Estado que submerge. As águas voltarão a subir enquanto a necessidade de sobrevivência for soterrada por construções e prédios em prol do vil metal. Não se enganem, dos andares altos poderão ver (seguros de si) o rio correr, mas haverá um momento que não se descerá mais em solo firme e, talvez, nadar seja tudo que reste.

Ainda que isso soe pessimista, decidi concluir esse texto com a esperança da criança de 1984. Meus alunos — quis o acaso que eu me tornasse professora em escolas de periferia — não tiveram a mesma sorte que eu, mas são crianças e ainda veem a vida de uma maneira muito mais vital e leve da que eu vejo. Vejo neles restos da criança que havia em mim.

Convenhamos, se fôssemos honestos, diríamos “desistam, a maioria de vocês não irá vencer, à maior parte não serão dadas justas oportunidades.”. Mas é com a imprecisão que a ciência não pode me dar nesse exato momento, é com o ar que me é permitido respirar, com a água que posso beber e na cama que posso dormir que penso: não sei precisar quem de vocês será destinado(s) aos infortúnios impostos pelo Estado e seus descasos, pelo negacionismo climático, pela má gestão de políticas públicas. Não posso saber, sou uma privilegiada, não uma vidente.

Se o clichê de que “professores aprendem muito mais com seus alunos do que têm a ensinar” estiver certo (e acredito que esteja), alguns de vocês (gostaria que todos) hão de vencer os infortúnios. Não, não romantizo, não é justo que a batalha seja tão arduamente desigual. Mas só posso retribuir aos pequenos que tanto me ensinam dizendo:

Continuem sendo crianças, mas abram os olhos, estejam livres para brincar, se arriscar, mas saibam seus direitos de crescer. Em 2064 espero mesmo que vocês (desejo que todos) escrevam linhas felizes.

Em 1984 não sabia que estava “destinada” a querer escrever; em 2024, já não posso (nem quero) mais evitar. Cá estou, escrevendo. Dizem que para escrever é preciso sangrar… pode ser que sim, mas não acreditem que isso significa que a arte só venha de
um espaço de dor.

Sem mais delongas, caneta em mãos, punho em riste, avante com as histórias.

Reescrever é preciso, meus pequenos.

8 respostas para “Quantos restos restam de nós?, por Cissa Castro”

  1. Avatar de Terena
    Terena

    Texto emocionante!

  2. Avatar de Nestor Ourique Medeiros
    Nestor Ourique Medeiros

    Texto instigante. O futuro, construído na luta de classes, será fruto das nossas escolhas. Infelizmente nós gaúchos, ultimamente, estamos fazendo péssimas escolhas, felizmente os nordestinos nos salvaram. Chega de eleger vendedores!!!

  3. Avatar de Bea
    Bea

    Lindo demais! Profundo e verdadeiro

  4. Avatar de Luciane Sulvaa
    Luciane Sulvaa

    O mais clara descrição que vi sobre toda essa catástrofe.
    Mulher, filha, mãe e professora. Parabéns.

  5. Avatar de Tainá
    Tainá

    Parabéns pela sensibilidade.

  6. Avatar de Denise Oyarzabal
    Denise Oyarzabal

    Muito triste o que estamos vivendo! Em 1984 tinha 18 anos, não era mais criança? Ou eera! Estava ingressando no magistério municipal em Viamão…

  7. Avatar de Letícia
    Letícia

    Que lindo conseguir colocar em palavras o indizível. .. 💕

  8. Avatar de Fausto Silva
    Fausto Silva

    Rolando emoção no seu blog do coração!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *