Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Diário da Enchente

Inspirado no Diário da Pandemia – uma pessoa por dia, um dia de cada vez, iniciativa de Julia Dantas – o Diário da Enchente reúne relatos sobre a maior tragédia climática do Rio Grande do Sul. Editado por Luís Felipe dos Santos (@lfds85) e Raphaela Flores (@rapha_donaflor). Foto: Isabelle Rieger.

O dia de hoje, por Tatiana Cruz

*Texto enviado no dia 17 de maio de 2024.

Uma garrafa de 500ml dá umas 4 xícaras grandes de café passado ou, no meu caso, 8 canequinhas esmaltadas. 

Também é a medida exata para um banho de chaleira, levando em conta que você já terá se ensaboado, no seco mesmo, embaixo das axilas, pescoço, barriga, suas partes íntimas, as pernas e os pés, daí você só deixa água cair, quente, o luxo dos milênios. 

Uma garrafinha dessas também dura cerca de 10 rodadas de escovação dos dentes (duas pessoas), pois você nunca mais desperdiça uma gota qualquer, você escova primeiro, faz um bochecho, cospe, coloca um pouquinho dela numa tampa de garrafa térmica, repousa as mãos e usa o resto para dar uma limpada na escova e na pia e bora volver às atividades do dia. 

500 mililitros de água: estou girando em torno disso por cerca de 10 dias, mas ainda deliro em puxar uma descarga. A merda é uma merda: podem até tentar esconder, mas a merda cheira à merda, a merda tem cara de merda, a merda está aí, pra quem quiser ver.

Vejamos a merda: pisoteamos na face da Terra, achando que a Terra não tem vida. Mudamos o curso dos rios, aterramos os lagos, desmatamos a cabo a rabo, zombamos de quem escuta a natureza, pedindo licença para o uso dos recursos do ecossistema, sim desprezamos a sabedoria ecológica dos povos indígenas, achamos que somos os únicos. Mas venta do sul e as vazantes não fluem. Mas estaciona o calor no sudeste, e a chuva não tem para onde correr, chove  nas nossas cabeças, o planeta é muito mais forte, o planeta é um bicho grande com um rabo gigante que, vez por outra, se mexe e recoloca tudo em equilíbrio num sistema muito maior do que os nossos humanos umbigos terrestres. 

Esse é o dia de hoje na enchente. Não tenho os pés molhados. Não perdi parentes, nem documentos. Não estou sem água potável e tenho alimento. E hoje até sorri vendo o sol entrando pela janela e deixando as minhas plantas amanhecerem um pouco douradas, mansamente alegres, eu até sorri e depois me senti culpada. Culpada por sorrir. Só ajudo mandando dinheiro. Dinheiro, que merda. Tudo parece fora e dentro. Meu banheiro tá cheio de merda. Nossos banheiros estão cheios de merda. E isso é pouco e isso é nada diante do tamanho todo da merda. 

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