Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Diário da Enchente

Inspirado no Diário da Pandemia – uma pessoa por dia, um dia de cada vez, iniciativa de Julia Dantas – o Diário da Enchente reúne relatos sobre a maior tragédia climática do Rio Grande do Sul. Editado por Luís Felipe dos Santos (@lfds85) e Raphaela Flores (@rapha_donaflor). Foto: Isabelle Rieger.

Milonga abaixo de mau tempo, por Pepe Martini

Nossa Milonga abaixo de mau tempo, inundada pela fúria das águas e pela incompetência dos homens. Este refúgio e bolicho da Travessa Venezianos – mais veneziana do que nunca – viu a água chegar lentamente, seguindo mais o ritmo das Casas de Bombas que o nível do Guaíba.

A enchente havia tomado parcelas importantes da cidade havia já três dias quando o sistema de proteção do bairro colapsou. Sem energia, as bombas que deveriam expulsar a água da cidade passaram a acolhê-la, ampliando a dimensão do caos e das perdas. Nossa Prefeitura, há longos anos ocupada por adeptos do Estado Mínimo e do sucateamento máximo, não se dera ao trabalho de providenciar geradores para evitar a interrupção do bombeamento. Providência simples que teria diminuído consideravelmente o sofrimento da nossa gente. Como de costume, o desastre ambiental é também político.

Nossa casa centenária esteve nove dias embaixo d’água, vendo perder-se na lama equipamentos, manutenções recém feitas e insumos diversos. Perdas bastante consideráveis para um comércio de pequenas dimensões, mas ainda incomparáveis às vidas e casas levadas pela correnteza em tantos lugares tão próximos quanto queridos.

Nosso povo resistiu como pôde, atônito com a calamidade mas determinado a sobreviver e contribuir com os demais. Braços ativos e exaustos foram resgate e remanso, construindo uma solidariedade ativa que salvou vidas e cultivou esperanças ostensivamente. Saber da existência dessa energia antes oculta é um alento, embora saibamos também que muitas vezes a tragédia não vem acompanhada de aprendizado político. Que desta vez façamos diferente.

Em meio à tragédia descobrimos também a força da comunidade deste espaço cultural, de amplidão bem maior que os escassos metros quadrados que a casa possui. Para além das águas, fomos inundados pelo afeto da nossa rede de amigos e clientes, que ofereceram mão de obra, palavras de consolo e uns bons pilas para impulsionar nossa reconstrução, ainda em processo. No quesito humano, saímos fortalecidos dessa crise, carregados de emoção e gratidão imensas.

Com a mesma força resiliente da nossa terra seguiremos compondo esta Milonga, ritmo que “se canta alegre e se canta triste também”. Te convidamos a cantar e caminhar com a gente

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *