Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Diário da Enchente

Inspirado no Diário da Pandemia – uma pessoa por dia, um dia de cada vez, iniciativa de Julia Dantas – o Diário da Enchente reúne relatos sobre a maior tragédia climática do Rio Grande do Sul. Editado por Luís Felipe dos Santos (@lfds85) e Raphaela Flores (@rapha_donaflor). Foto: Isabelle Rieger.

Nanã: silêncio, transe e fuga, por Luís Felipe dos Santos

 A mitologia iorubá trouxe ao Brasil a figura de Nanã, uma deusa que vem do barro e que molda o ser humano pelas suas mãos. Nunca se viu tanto barro no Rio Grande do Sul como nos primeiros dias de maio — e Nanã terá muito trabalho, pois ele nos moldará a partir de agora.

Silêncio

As nuvens pesadas que estacionaram sobre o nosso Estado deixaram em Porto Alegre uma manta de silêncio. A ausência de palavras, de música, de festa, de burburinho, de conversas intensas, é a tônica dos últimos dias. Entre a Borges de Medeiros e a Andradas, existe a “Esquina Democrática”, que assim é chamada porque todos os grandes debates e manifestos do Brasil no último século por lá passaram. Essa esquina está vazia, e a água espreita ao lado, pois ali não pode subir.

Moro em um lugar em que a água também espreita, mas não sobe.ra Desde fevereiro, estou em um apartamento de último andar no bairro Floresta, invulnerável à água que vem de baixo. Por cima, descobrimos fendas no telhado, que os funileiros disseram exigir uma reforma geral que provavelmente custará caro. É um prédio antigo, com proprietários modestos, e pagamos um preço módico pelo apartamento – nossa maior dívida e conquista.

Não deu tempo de analisar a possível extravagância da reforma geral, pois a água que veio de baixo nas ruas vizinhas transformou o bairro Floresta em um grande porto de dor, sujeira, ansiedade e silêncio.

A Avenida Farrapos, que berra decibéis de barulho de ônibus, gente, comércio, cultos, gozos e música, virou uma extensão do Guaíba. Avançou no domingo e lá ficou até o domingo seguinte, momento em que escrevo. É possível que desça até o próximo, mas não sabemos.

As vidas que do entorno de lá fugiram, de todas as idades, saíram de barcos, de jipes, de motos aquáticas, caiaques, pranchas, caixas d’água, ou até mesmo com os próprios pés e algumas sacolas de roupas. Encontraram nas ruas transversais, da Barros Cassal até o Viaduto José Utzig, a esperança de dias secos em lugares incertos. Tentei falar com várias delas ao longo dos dias e poucas quiseram falar. A dor de sair sem saber quando voltar, o que levar ou para onde ir, carrega consigo o silêncio.

Às vezes, a dor também é física. Em uma das esquinas, pinos e cachimbos boiavam, e vagavam aqueles que usavam as drogas contidas neles para aguentar sua própria sobrevivência. Essas pessoas gritam e gemem de dor durante a noite, reclamam dos dentes, grunhem coisas incompreensíveis, choram, pedem por um socorro impossível.

Esses gritos quebram a manta do silêncio. Não são suficientes, entretanto, para nos despertar do transe, voluntário ou não, que se abate sobre o porto dos rios de barro.

Transe

Aqui em casa, a sensação de que é impossível planejar o dia seguinte nos mergulhou em uma espera que não dói, mas paralisa.

Trabalhamos em vários dos dias da semana, pois nossos serviços não podem parar – eu no jornalismo, Renata na saúde pública – e nossos filhos não foram para a escola, cuja sede foi alagada. A conexão de internet é instável há uma semana, e nossa TV depende disso. Abasteci a casa de comida ainda na quinta-feira anterior, sabendo que as notícias não eram boas. Os arroios começavam a encher, o Guaíba subia sem parar, e naquela noite superara a temível marca da enchente de 1941, quando não havia muro nem sistemas de contenção, que depois se mostraram pouco úteis.

A água desapareceu das torneiras nesta semana, nos impedindo de escovar os dentes três vezes por dia, cozinhar mais do que uma panela de arroz ou tomar banho diário. Quando vou ao trabalho, também vou com toalhas e muda de roupa, pois a estação de tratamento lá abastece os chuveiros. De forma errática, com banhos rápidos, mas ainda assim, banhos.

Durante a semana, a água começou a entrar no nosso prédio, e tive que ir a uma ferragem providenciar tijolos para fazer uma ponte improvisada. Um dia depois, a água desceu, e o síndico e eu improvisamos com os tijolos uma barragem com o objetivo de impedir que de novo subisse.

Todos esses perrengues se mostraram nada perto do que vivem amigos, conhecidos, colegas, parentes que fugiram dos alagamentos que devastaram suas casas. Entre essas pessoas, está a minha mãe.

Fuga

A área onde nasci e me criei era, no passado, um banhado na várzea do rio Gravataí. Ainda nos anos 1940, o banhado foi estruturado para moradias populares, com loteamentos organizados pela imobiliária Farroupilha. Meus avós compraram um desses lotes e lá construíram a casa onde moraram até o fim dos seus dias, que ficou de herança para a minha mãe. Ali nasci, em 1985.

No ano seguinte, com o congelamento de preços do plano Cruzado, meus pais ergueram na parte da frente do terreno uma residência de três quartos – um deles no segundo andar, onde vivi toda a minha adolescência. Meu pai dizia que queria um lugar onde fosse possível morar toda a família, quando tivéssemos filhos, com espaço para mais um andar. Meu irmão construiu outra casa no fundo do terreno, em cima da moradia original. Ele comprou outra, no mesmo bairro, mas se separou e voltou para lá. A casa original abriga a minha tia, que há alguns anos ficou sem ter onde morar e fez dali seu lar.

No dia 4 de maio, minha mãe, meu irmão e minha tia saíram do lugar onde nossa vida foi construída porque a água subiu até alcançar as janelas. No dia 5, recebi o primeiro vídeo que mostrava a piscina preta tomando conta de todo o primeiro andar. O vídeo só tinha o som do coaxar de um sapo.

Naquele dia, eu precisava trabalhar. Não consegui.

Ainda não consigo descrever o impacto daquelas imagens na minha vida. Dias antes, no meu aniversário, fizemos lá um churrasco no qual reunimos a família e alguns amigos para celebrar a chegada dos meus 39 anos, que, pela primeira vez em muitos anos, chegavam felizes, quase livres de angústias pessoais. A memória daquela celebração vai ser necessária para me dar a força para ajudar a reerguer a casa onde me criei. 

Sete dias depois, antes do Dia das Mães, minha mãe pediu para que eu não fosse para a Lomba do Pinheiro, onde ela estava, “sem necessidade”. Pouco depois, me mandou uma mensagem do Caboclo Águia Branca, que em resumo diz que a tristeza e as más vibrações nada ajudam, e que esse é o momento de emitir coisas boas para o universo para que ele nos ajude a ter uma reconstrução plena.

Talvez seja disso que os iorubás tenham falado quando criaram o mito de Nanã. 

A área da antiga nação iorubá é repleta de banhados e áreas alagadiças, e as casas dos povos daquela região da África são permeadas de barro. Respeitaram, a seu modo, os dizeres da natureza para fazer do barro que vinha das áreas altas, carregado pelos rios, as estruturas para construir a sua civilização. Anos depois, os europeus transformaram aquelas pessoas em mercadorias e forjaram, por meio da dor e da violência, a maior diáspora humana da história com a escravidão.

São mais de 300 mil os gaúchos que foram colocados na diáspora humana da enchente. A dor e a violência das águas vieram permeadas de descaso com a natureza, de exploração inconsequente do solo, do silenciamento de quem dizia que nem tudo é capital. 

Do barro que devastou o nosso mundo pode se erguer um novo gaúcho, como bem ensinou Nanã. Ele pode ser selvagem, cruel e intolerante, espalhando mentiras em troca de engajamento e destruindo a vida em troca de dinheiro, para arrastar ainda mais a nossa civilização para o cadafalso, ou pode saber que da natureza veio e para ela precisa voltar. 

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