Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Diário da Enchente

Inspirado no Diário da Pandemia – uma pessoa por dia, um dia de cada vez, iniciativa de Julia Dantas – o Diário da Enchente reúne relatos sobre a maior tragédia climática do Rio Grande do Sul. Editado por Luís Felipe dos Santos (@lfds85) e Raphaela Flores (@rapha_donaflor). Foto: Isabelle Rieger.

Nada poético, por Lúcio Brancato

Num lirismo cruel e avassalador, o céu noturno estrelado da cidade nunca esteve tão nítido da minha janela. As nuvens que dissipavam da primeira tormenta revelavam na escuridão da Cidade Baixa estrelas que nunca pude ver. Não existia mais a penumbra do recorte da luz dos postes, das janelas dos outros prédios, ou dos faróis dos carros, somente a noite perpétua de estrelas que preferia não ter visto.

O silêncio interrompido por sirenes e helicópteros, nos seus intervalos trouxeram sons de uma maré que se aproximava cada vez mais. Assim como o céu estrelado, o vai e vem tranquilizador de uma enseada também não me pareceu poético. Era a enchente tomando conta da pracinha, da rua e da calçada de buracos. Água atravessando muros, grades e portas dos velhos casebres centenários.

As velas derretendo no candelabro, com o passar das noites criavam na minha sala um altar sem entidades. Transformavam minha sombra na única imagem reconhecível dentro do meu universo particular e ditavam um novo tempo de um relógio sem ponteiros. A cada fósforo um novo ciclo, em cada cera derretida mais uma noite.

 

O mesmo vento que naquela noite levou as nuvens, empurrou a maré e assoprou as velas, trouxe mais uma vez a chuva. Nuvens carregadas, cruéis e avassaladoras que ancoravam constantemente correntes de água sobre um Porto Alegre com um cais em cada esquina.

Uma resposta para “Nada poético, por Lúcio Brancato”

  1. Avatar de Elizandra Marques(Lica)
    Elizandra Marques(Lica)

    Que relato incrível!! Via em cada palavra as cenas e a angústia da vivência do momento! Parabéns

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