*Texto enviado no dia 17 de maio de 2024.
São um ou dois quilos de agasalho que carrego?
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Telefono a um amigo que há tempo convida para visita. Agora me disponho – preciso tomar banho – ir à Zona Sul, conhecer a casa, lavar a alma com água e deslocamento físico. Entenda: há três ou quatro anos qualquer ida de um ponto a outro se tornou uma adição ao constante estresse que a mente hiperativa enfrenta.
Ele está próximo ao local de um de seus trabalhos de iluminação que foram cancelados – relatos do amigo apavoram ao mencionar os arredores do Teatro Renascença. E não sendo possível a visita com intuito de banho, peço outro favor, uma vez que o curto lapso de coragem para sair se encerrou e retornara à incapacidade de deslocamento cujo mecanismo psicológico não cabe a mim decifrar.
Biel traz os cigarros, um bocado de comiseração e espanto pelas consequências da chuva e sua parte na jam nostálgica que improvisamos, com toda a carga que décadas de convívio e os recentes anos de desencontros trazem à nossa QueBomTeVerDenovo Jazz Duo.
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São no mínimo dois quilos, pelo peso que me faz apoiar ombros na bancada em que organizo as doações, segurar a cabeça, respirar fundo e começar de novo.
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Lembro do Denis toda vez que chove ou faz frio e estou há muito tempo sem andar pelas ruas que separam minha casa arquitetonicamente planejada e estruturada de sua morada na calçada, um morar urbano com princípio aparente de estadia mas de longe mais afirmada que minha permanência onde quer que tenha (eu) estado.
Faz alguns ele pediu para levar um café ali, em uma próxima vez que eu saísse. E ainda que tenha demorado um pouco, consegui fixar em minha rotina matinal o compromisso de, em algum momento ao longo do dia nascente, esquentar o leite, bater com café instantâneo e uma adição de açúcar, servir em um bule ou copo descartável para levar até a esquina da Costa Rica com Assis Brasil.
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Definitivamente, não são mais que dois quilos.
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Levanto de pulo para ferver a água pro café passado que deixo para a mãe enquanto preparo o lanche para Denis. Raramente encontro mais pessoas naquela quadra pela manhã, então não me ocorre levar mais do que o básico pro amigo. Ocorre, sim, preparar mais tarde uma refeição como almoço, em maior quantidade, visto a movimentação de transeuntes por suas motivações gerais encontrar paralelo no meio horário diurno outras pessoas a quem faria bem compartilhar minha parca capacidade culinária – em suma, outros moradores de rua, que pouco conheço, mas presumo encontrar a partir do meio-dia nesse perímetro já marcado no trajeto costumeiro.
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São só dois quilos nessa soma de moletons, cobertas, casacos, calças, cobre-leitos e blusas de lã que preparei para a próxima leva.
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Será que as pessoas ficariam brabas se soubessem que suas doações vão ser repassadas para quem mora na rua?
“Claro que não.”
Mas elas não dariam para quem há anos vive sem teto sem cep e sem paredes pra protegê-las do frio, dariam?
“Claro que sim…”
Chove e ainda tenho que imaginar por que preciso carregar, sozinho, tantos quilos de cobertores, roupas, fronhas, travesseiros et cetera que viajaram dentro de carros por toda a cidade até se tornarem excedentes onde deixados, quando bastava não esquecer de atentar ouvidos e virar o olhar a quem sempre estava ali pedindo.
A asma ameaça, mas não chega a sufocar. É a constrição causada pelo excesso de umidade – assusta, mas corticoide, café e salbutamol coreografam uma dança de abre-brônquios para mim.
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“Obrigado por lembrar de mim!”, solta, com uma naturalidade que nunca vou ter, meu amigo de rua em alguma manhã de maio, quando entrego o café com leite trazido às pressas para não esfriar, enquanto me curvo acendendo o cigarro com o isqueiro que ele estende quando peço a brasa.
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