Quando descemos do carro e a lama colou nas minhas botas já na primeira pisada, eu mal sabia que a lama grudenta não era tão grudenta quanto o fedor que ficou no meu nariz até agora.
Olhando para toda a devastação da ilha da Pintada tive vontade de ter inúmeras mãos e braços. O bairro Arquipélago será o último que o Guaíba devolverá a cidade de Porto Alegre. Sempre foi. Em toda a história, todos os anos há algum tipo de inundação por lá, mas nenhuma outra enchente foi tão devastadora quanto essa de 2024. Eu gostaria de desvirar os carros, de devolver as casas arrastadas para os terrenos, de recolocar as montanhas de areia no leito do Guaíba e, acima de tudo, queria sumir com aquela lama fedorenta. É uma lama preta porque mistura a areia limpa com o esgoto e com toda a incompetência dos seres humanos em se conscientizarem ser parte e não todo. A lama invadiu casas, creches, escolas, bares, restaurantes, casas de bomba. Até em lugares em que ela não chegou, a lama invadiu com o seu fedor. A lama onipresente.
Eu não sou onipresente, mal sei ser eu mesmo, e sucumbi ao poder do fedor. Ele impregnou o meu cabelo, a roupa, o nariz. É um fedor que deixa a gente ilhado. Uma tristeza que isola as pessoas e retira-lhes o ânimo de viver. Quando se pensa na Porto Alegre inundada, desastre que poderia ter sido evitado em grande parte, e que, mesmo assim, as ilhas seriam inundadas (lá não é o Menino Deus nem o Quarto Distrito), fica difícil de impedir que o fedor tome lugar nas pessoas.
Repetindo: somos parte, não somos todo. É vital se dar conta. Seguir adiante, em contexto de desastres, tem um quê de não pensar, um quê de encarar o fedor contaminado e fazer o necessário. A lama vai ficar grudada nas minhas botas, o fedor ficará no nariz o tempo que for e vamos nadar nesse lamaçal até ele secar ou sumir na poeira do vento. O onipresente planeta Terra sempre nos fará lembrar de sua força.
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