A escrita para mim sempre foi uma forma de cura. Prática transformada em arquivo particular atirada em gavetas da vida. Primeira a se tornar pública é esta. Resid(ia) num sitio em área rural no Vale do Guaporé em Vespasiano Correa. Opção de afastamento de um mundo que às vezes me incomoda. Nesse lugar os ciclos da natureza sempre tiveram o poder de me embevecer. O rio transbordando cerca de dois a três dias por ano, os pequenos fios d agua se transformando em cachoeiras, as secas temporárias, o rugido de trovões, os relâmpagos intensos, o céu bordado infinitamente de estrelas – tudo tinha sua previsibilidade. Dessa vez foi diferente. Durante quatro dias fiquei isolada sem saber que horas eram. Dos barulhos que escutava não sabia se era de trovão ou de pedras despencando morro abaixo. Algo grave acontecia. Durante esses dias me habituei ao ritual de sair e avaliar os riscos de atravessar um curso d’água que se transformou numa cachoeira. No quinto dia arrisquei e cheguei a comunidade vizinha me ajudou a sair de dentro d’água.
O cenário era devastador. Só consegui sentar no chão e chorar silenciosa e convulsivamente. Nesse momento descobri que minha casa não era só o espaço fisico da construção. Sempre julguei aquela paisagem como minha casa e não sabia. Me doeria menos se a avaria fosse na casa. Bem físico se reconstrói. Mas e as margens dos rios e as montanhas? Ali fiquei por mais três dias e nos deslocamos a pé em quatro pessoas por 10 km. Consegui mandar noticias e apaziguar os corações de meus entes queridos. Trabalho no INSS e no mesmo dia solicitei uma transferência de urgência para trabalhar no atendimento às comunidades indígenas no Amazonas. Essa escolha tinha uma razão de ser. Queria ter a experiência de diminuir o valor de minhas perdas frente a outras realidades de vulnerabilidades infinitamente superiores à minha. Sessenta dias… Dessa vez não consegui me voluntariar como em setembro e novembro. Ao jogar minha mala numa camionete que me deu carona para ir para o Amazonas não olhei para trás, não olhei pelas janelas do carro, me senti uma fugitiva de uma guerra. Retorno para a cidade de Encantado e ainda não para minha casa. Quase tudo está como antes. A urgência do Poder Público não é a mesma dos cidadãos. Tenho sentido muito raiva do positivismo tóxico divulgado pela mídia sobre a força de reconstrução do gaúcho. Me ofende profundamente.
Denise Andrade é mãe de Álvaro Andrade. Ele mora em Barcelona e escreveu para o Diário da Enchente, relatando a experiência de ter ficado sete dias sem notícias da mãe. Leia aqui.
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