De que jeito vão embora, perguntei.
Alguém da vila vem buscar os três, numa Kombi.
Para onde vão, perguntei.
Para a casa da enteada da mulher, em alguma cidade perto de Porto Alegre.
Os três iriam embora, mas ainda para uma casa que não era a deles.
Eu só sabia o nome da filha.
O homem eu pouco tinha visto.
O nome da mãe descobri na hora da partida.
A mãe vinha sempre ao nosso “setor”, o de doações, buscar coisas para a filha, sempre em nome da filha. Quase nunca para ela, sempre para a filha: fraldas no tamanho extragrande para a menina de 18 anos – um quase bebê que não fala, mas entende tudo –, uma roupa para a filha, um calçado para a filha.
Não sei a idade da mãe.
Ouvi dizer 45. Calculei pelo menos 50.
Em meio ao mar de colchões, do amontoado de sacos e caixas simulando divisórias e um mínimo de organização, ela caminhava rápido, sempre se arrumando, preocupada não apenas em ir embora logo para limpar a casa ou o que restou dela em algum lugar assolado pela enchente, mas em manter os cabelos pintados, as sobrancelhas delineadas.
Naquela manhã em que iriam embora, eu tinha reunido calçados para preencher o kit de despedida do abrigo onde ficaram os três por quase um mês. Um outro voluntário montou todo o resto. Saí para almoçar e voltei na hora em que os três se despediam. Ainda ajudei a carregar a Kombi com sacos e sacolas.
A vida inteira cabia naquela Kombi que se despedaçava.
Tentei interferir na colocação do colchão no telhado do carro. Temia que se perdesse no caminho o bem mais valioso da família.
Não te preocupa, dei nó de marinheiro, garantiu o motorista.
Na parte detrás, sem assentos, um monte de sacos pretos e azuis com peças de roupas, calçados, travesseiros, colchas, algum material de limpeza, galões de água…
E como vão se acomodar os quatro num só assento, perguntei.
Não cabe, respondi eu mesma.
Quando terminamos de empilhar os sacos, o homem se deitou na parte detrás, sobre os pertences.
A menina se despediu com abraços de todos os que cercavam a Kombi, os companheiros de infortúnio e de teto por um mês e os voluntários. Abraçou uma, duas, três vezes. Repetia abraços e beijos.
E ria.
O homem não saiu mais de dentro da Kombi.
A mulher deu voltas no carro, abraçando a todos várias vezes.
E chorava.
Ninguém conseguia fazer a menina entrar no banco da frente. Tentava colocar os dois pés de uma só vez, sem conseguir subir. Um outro abrigado, com quase tantas dificuldades quanto ela, tentava ajudar. Do lado errado, mas tentava.
Até que uma voluntária interferiu e conseguiu o que parecia impossível naquela hora: coloca primeiro este pé, depois o outro.
E ela subiu, rindo.
A mãe, baixinha e ágil, montou no banco de um pulo só, chorando.
A Kombi deu ré no gramado molhado, patinando com o peso.
Carregava os três e uma vida inteira dentro dela. O que restou de uma vida depois do todo perdido.
A menina ria. A mulher chorava.Partiram para um lugar que eu não sei onde é.
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