Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Diário da Enchente

Inspirado no Diário da Pandemia – uma pessoa por dia, um dia de cada vez, iniciativa de Julia Dantas – o Diário da Enchente reúne relatos sobre a maior tragédia climática do Rio Grande do Sul. Editado por Luís Felipe dos Santos (@lfds85) e Raphaela Flores (@rapha_donaflor). Foto: Isabelle Rieger.

Carta para, por Rodrigo Terra Costa

Porto Alegre, algum dia de Maio de 2024

 

Buenas… Tudo por ai?

Por aqui indo, baixando despacito…

 

Espero que essa carta chegue bem, sei que deve ter sentido preocupação e aflição em não ter recebido notícias…

Mas sabe como é, as coisas não andaram fáceis por aqui (já faz um tempo) e essas últimas semanas foram bem atípicas. O noticiário deve ter mostrado alguma manchete de apelo emocional, famosos devem ter se compadecido com a tragédia, mas acho que não tanto como foi de fato com as pessoas daqui mesmo sabe? Também acho que a barreira linguística pode ter dificultado um pouco a comunicação, ainda que as imagens tenham dado uma amostra do que foi o caos (generalizado).

A vieja está bem (muito forte dizer que bem, né?)… Materialmente bem… Lá faltou luz e água durante uns dias, ela teve que se abrigar na casa de uma amiga e fazer deslocamentos homéricos pra ir e voltar, mas a enchente não chegou de fato na avenida da casa dela. Tu tinha que ver… Um dia fui lá na casa da amiga carregar o celular e quando ela me viu quase desabou de choro, por um instante pensei em me entregar também, mas naquele momento não podia, não queria demonstrar pra ela que a enchente  também nos transbordou de lágrimas represadas. Acho que foi algo que me disse: ‘Cara, tu precisa mostrar pra ela que está tudo bem, que vai ficar tudo bem’, ainda que no fundo eu soubesse que isso era muito relativo e otimista.

Enfim, a carta é e não é um pouco sobre isso… Afinal, te colocar a par de tudo que aconteceu também é uma forma de fazer isso comigo mesmo e, colocar-se a par do que aconteceu e está acontecendo não é um processo fácil, diga-se de passagem. Imagino que durante a pandemia tu deve ter sentido mais ou menos o que sentimos aqui, dadas as proporções. Mas é aquilo né… Doença, catástrofe e filha da putice não tem lugar nem hora (rs).

– – –

Já na primeira semana de Maio o pessoal começou a ficar bem preocupado com o volume de chuva que tava caindo no Vale do Taquari (Lembra que te contei que a família da minha companheira é de lá?). Bom, a quantidade de água que choveu foi uma coisa absurda, dantesca (aqui me faltam adjetivos de grandeza). Sério mesmo! Estilo cidades que mais choveram no mundo inteiro. Cidades inteiras ficaram submersas, as pontes caindo, os telhados das casas começando a desaparecer naquela imensidão de água que vinha descendo no vale. Negócio de filme sabe? Bem daqueles que eu gosto, onde a humanidade fica totalmente a mercê do acaso e a natureza vem tomando conta sem prestar explicações.

Dou risada comigo mesmo agora pensando sobre isso, porque os filmes normalmente terminam com a humanidade salva e a vida seguindo tranquilamente num pôr do sol que mais parece uma miragem. Aqui no mundo real, as cenas que eu via na tv e no celular foram aos poucos se tornando um pesadelo que não tinha pretensão de acabar.

Os dias seguintes, que já faziam parte do mesmo pesadelo, foram tomando proporções cada vez maiores. Como está todo mundo? Quem precisa de resgate? Onde é o lugar mais próximo pra ser voluntário? Como posso ajudar no que dá? Como não terminar o dia exausto, com muita vontade de beber e tentar minimamente amortecer o impacto de uma queda que nem ocorreu ainda?

E te digo, ainda sinto meu corpo caindo…

Tudo ainda parece lamacento aqui dentro, as águas podem ter baixado, mas e os escombros?

As ruas já não são as mesmas, as marcas de até onde a lama chegou assustam transeuntes e moradores. As coisas das pessoas atiradas na frente das casas como descarte, óbvio que isso se consegue de volta… Mas e aquilo que não tem preço? Como reconstruir memórias deturpadas por lama e sujeira?

Como devolver pra quem já não tinha quase nada, aquele possível quase?

Não sei bem como te responder isso, talvez porque meu coração esteja tomado pela revolta e pela tristeza que acomete os meus e os próximos.

Um Estado que negligencia o poder das águas, dos ventos, do fogo e da terra está fadado ao fracasso (SEMPRE). A cidade que um dia tu conheceu nunca mais será a mesma, me sinto na obrigação de te levar pra conhecer novamente as ruas por onde diversas vezes passamos.

Mas vou te dizer algo de bom nesse singelo relato de atualização, a força que as pessoas tem de se mobilizar e fazer as coisas acontecerem é estrondosa, é visceral, contamina quem estiver a postos e disposto.

Queria que tu estivesse aqui pra ver, pra se revoltar e construir junto esse futuro que nos foi usurpado, mas que é possível alcançar.

Não consigo colocar em palavras a força que minhas amizades me deram nesses últimos dias, acho que sem eles eu ia junto com a enchente em direção ao mar. É tão bom saber quem está do nosso lado da trincheira sabe? Bom, acho que tu sabe…

 

Ah… As coisas parecem estar voltando ao ‘normal’ na medida do possível (rsrs). Mas espero que esse normal seja algo diferente do normal que tínhamos antes… porque senão… a próxima carta vai chegar de barco.

Espero que as coisas estejam bem por ai, também na medida do possível (rsrsrs).

Um abraço imenso nas crianças e nos bichos. Tu tá regando direito aquele manjericão que tu levou a muda né?

Outra coisa que me ocorreu agora mesmo, tem eleição aí esse ano também né… Pelo amor de deus, se mobilizem vocês aí porque senão vai dar merda!!!!! (Dito por quem já está com os dois pés nela).

Enfim… Termino essa carta com uma reflexão que não é minha, mas que nos contempla. O autor tu já conhece, passamos noites e dias falando sobre ele e suas obras.

‘Do rio que tudo arrasta, diz-se violento. Mas ninguém chama violentas às margens que o comprimem’

Bertold Brecht

 

P.s: Já passou da hora de levarmos o rio a sério.

P.s.s: Vem nos visitar de uma vez, mas cuida que o aeroporto não tem previsão de receber voos ainda… Talvez esteja na hora de tu botar o plano do submarino em andamento.

 

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