*Texto enviado no dia 29 de maio de 2024.
No primeiro dia da enchente, abri as portas do meu armário e separei roupas que eu não usava há pelo menos um ano, com o objetivo de destiná-las às pessoas que estão com suas roupas afogadas. Acessei partes esquecidas do meu armário, onde a luz não alcança, fazendo com que tudo ali permaneça fora do meu campo de visão durante muito tempo. Entre as meias sem par e as notas fiscais amassadas, encontrei o álbum de fotos que ganhei de herança da separação dos meus pais. São histórias desejadas por ambos e, como precisavam escolher algum destino para todas aquelas fotos, decidiram deixar comigo. Talvez o fundo do armário da filha única não fosse o destino imaginado, mas assim aconteceu. Até que não mais.
A capa está amarelada, marca do tempo antigo a que ela pertence. Abri o álbum e a primeira foto vista sou eu, soprando uma velinha rosa com o número três. Estou assoprando o mais forte que poderia, sei disso ao ver os pelos da minha sobrancelha se curvando para baixo. Algo que faço até hoje quando preciso fazer muita força. Provavelmente, na tentativa de apagar a vela com a força do sopro de uma criança de três anos, acabei espalhando gotículas da minha saliva no bolo inteiro. Ninguém sentiu ou pareceu se importar. Ao ver essa foto, saboreei o tempo em que ninguém contava as gotas. Agora, cada gota gera dor, principalmente as que caem do céu.
Agora existo e tenho em mãos um álbum de fotos que retém a memória do amor dos meus pais. Folheio o álbum e vejo uma foto da primeira viagem feita juntos: Gramado. Semana passada, vi uma reportagem da rua desmoronada de Gramado, a chuva foi tanta que o asfalto de concreto não aguentou e isolou um bairro inteiro. Imagino a angústia das pessoas isoladas no bairro. Imagino o desespero das pessoas do estado inteiro que perderam o lugar em que sonham e fazem amor. Imagino as casas olhando para a água com paredes geladas de dor. Imagino os álbuns de fotos encharcando e submergindo pelo peso das gotas acumuladas. Em um litro de água existem aproximadamente vinte mil gotas. Imaginei cada gota correspondendo a um item perdido na enchente. A verdade é que mais de sete mil toneladas de entulhos gerados pela inundação já foram recolhidos na capital. Penso na quantidade desses entulhos que contam uma história. Histórias de famílias que poderiam ser colocadas num álbum de fotos no fundo do armário e quando encontradas tempos depois, traria belas surpresas. Agora, todas essas histórias estão materialmente perdidas na catástrofe.
Se eu não tivesse encontrado esse álbum, não teria acesso a essas memórias escondidas dentro de mim e dentro da minha família. São lembranças que só acessei pelo contato visual de um registro do momento já passado. Pude criar uma história para cada uma delas. Desejo que neste momento, todas as famílias que tiveram seus álbuns de fotos levados pela irresponsabilidade de quem deveria cuidar de nossas histórias, possam reconstruir suas memórias com afeto e garra. Com a força da nossa memória, construiremos novas possibilidades de narrar tudo o que está acontecendo e que virá a acontecer. Agora, preciso enrugar minha testa com a força das sobrancelhas, para que a força também apareça em formato de lágrimas. Cada gota estará sendo contada.
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