Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Diário da Enchente

Inspirado no Diário da Pandemia – uma pessoa por dia, um dia de cada vez, iniciativa de Julia Dantas – o Diário da Enchente reúne relatos sobre a maior tragédia climática do Rio Grande do Sul. Editado por Luís Felipe dos Santos (@lfds85) e Raphaela Flores (@rapha_donaflor). Foto: Isabelle Rieger.

A velhinha da enchente de 24, por Magali Schmitt 

mais sobre o tema que não se esgota, a pauta eterna

Cada pessoa é um batalhão nessa enchente. Sábado logo cedo, me vi soldado, inseguro sem saber o que fazer, para onde ir, esperando voz de comando diante de uma montanha de escombros e incertezas. A gente fica em choque quando quem nos conta a tragédia são os nossos próprios olhos, não as câmeras de TV ou as fotos. Nenhuma mídia é capaz de traduzir o cheiro daquela dor — que arrasa o que se tem de mais íntimo —, uma dor histórica, uma dor pesada que esmaga o peito, contrai o estômago. Uma dor de vida zerada.

referências brutais

Só vendo pessoalmente para entender a dureza dos quadros que choram nas paredes borradas, a 3×4 de um ente querido pisoteada, as alianças perdidas no lodo, um pé de sapato da festa de casamento boiando solitário. Pequenos exemplos dessa pintura abstrata. Porque o estado da arte aqui é diferente e, um a um, todos tivemos nosso gatilhos pessoais. O meu foi ver o cachorro morto em cima da cama. Me desnorteou. Me plantou um paralelepípedo no peito.

a insustentável leveza

É como perder alguém e um mês depois abrir o caixão. Cada objeto é uma lembrança e cheguei a pensar que um incêndio teria sido melhor. Parece cruel. Mas um incêndio acaba com tudo de vez e não dá chance para vasculhar os escombros e encontrar trajetórias mutiladas, cacos que não podem mais ser juntados, mesmo que a esperança insista. E esta esperança despedaça. E do incêndio só resta uma opção: ir direto para a próxima fase. Não há nada para resgatar das cinzas.

Na enchente está tudo ali. Mas quando a gente segura com força, tudo se desmancha, se desintegra ao menor toque. Desaparece na mesma velocidade que suscitou um turbilhão de memórias.

Então meu soldado inexperiente congelou. Enquanto os sentimentos em redemoinho pediam passagem, precisei dar conta das emoções e me reorganizar internamente. É uma guerra, exige reação. Assim, ainda era manhã de sábado quando me promovi a tenente — subindo de dois em dois pela ausência de contingente e porque as coisas precisavam ser resolvidas dentro e fora de mim. À medida que as patentes aumentavam, a força e a garra também voltavam.

é na cozinha que a vida acontece

Ao meio-dia, eu capitã conseguia respirar. Sentamos ao redor da churrasqueirinha improvisada, vestindo nossas roupas de esquadrão antibomba e comemos o melhor pão com salsichão do mundo, regado a sorrisos e lembranças de um tempo que não volta mais.

Ali ficava o pé de caqui e a bergamoteira. A casa do vô não parecia maior para vocês? Quem levou a pedrada na cabeça aquela vez, no acampamento?

Por instantes esquecemos o contexto, o trabalho todo que ainda vinha pela frente, o cheiro de finitude agarrado às coisas todas. Me senti feliz e confiante. Juntos, éramos mais do que um regimento. Uns na estratégia, outros na força, outros na retaguarda, no apoio, na comunicação, na enfermaria, na cozinha de campanha. Ocupamos todas as frentes. Nenhuma atividade é inferior ou dispensável.

o engajamento que realmente importa

No próximo sábado, voltaremos à trincheira. Ainda há muito a ser feito. Estamos tentando engajar novos recrutas na família e fora dela. É incrível como os laços de sangue nos unem ainda mais nessas horas. Entrei soldado raso e pretendo sair dessa batalha pelo menos como tenente-coronel. Mas já vou adiantando: não é uma carreira fácil.

uma vida em trinta dias

Talvez o Rio Grande do Sul fique num looping eterno vivendo e revivendo esse mês de maio. Um mês diferente de tudo que já enfrentamos. Trinta dias que nos ensinaram mais do que quase uma vida inteira. Mas é preciso ter raça para fazer essa travessia e sair melhor lá adiante. Estamos tentando. O que me conforta é que daqui muitos anos eu serei a velhinha que sobreviveu à enchente de 24.

 

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