*Texto enviado no dia 27 de maio de 2024.
Quando a luz voltou em uma sexta-feira à noite na Duque de Caxias, no Centro Histórico de Porto Alegre, os gritos da vizinhança e buzinas tomaram conta de uma parte do bairro. Havia vida e movimento em meio a tanta escuridão e medo.
Me senti grata e contemplada por poder puxar uma descarga, lavar o rosto e tomar um banho decente. Mas confesso que uma parte de mim, quem sabe uma parte generosa que até eu desconhecia, pensou, “eu ficaria um mês sem luz e sem água se fosse para amenizar ou diminuir todo esse estrago’. É como se eu quisesse falar (não sei para quem), “Pera aí, arruma onde está mais caótico e depois volta aqui”.
Apesar de estar psicologicamente abalada, não me importaria em ficar mais uns dias sem duas coisas básicas para uma rotina, afinal, tenho meu trabalho garantido, minha família está segura, tenho acesso a água e a banho quando preciso. O que seria ficar um mês sem luz e sem água se fosse para evitar tanta dor e angústia? Sei que é utopia. Mas diante de tamanha desgraça, a generosidade coletiva fala mais alto, os registros de tantos voluntários e pessoas que fizeram o bem a outras, falam por si só. Ficar no conforto da nossa casa passou a ter um peso de culpa estranho. É impossível não pensar em quem perdeu tudo, em quem foi arrancado dos seus lares de uma forma brusca, sem aviso prévio e sem esperança de voltar.
Um outro sentimento que essa catástrofe fez aflorar é a sensação de que nunca mais vamos ter os nossos lugares novamente. Por mais limpeza, reformas, pinturas e reconstruções que sejam feitas, o nosso Estado nunca mais vai ser o mesmo, os nossos lugares preferidos em Porto Alegre nunca mais serão os mesmos.
Em uma certa altura desse longo mês de maio comentei com um amigo: ‘tenho medo que Porto Alegre se torne uma Santa Maria depois do incêndio da boate Kiss’. Quem viveu em Santa Maria antes e depois do incêndio sabe que a cidade nunca mais foi a mesma. Perdeu a energia juvenil e alegre que tinha, carrega nas ruas o peso da tristeza e da impunidade. Será que a nossa capital, e tantas outras cidades, também serão assim? Passado mais de 27 dias já não tenho mais dúvidas que o tempo para ter nossas cidades de volta será longo.
No final de março completei um ano morando em Porto Alegre. Os privilégios que eu tenho aqui me fazem amar essa cidade. Mas uma rotina corrida me afastou de aproveitar os lugares que eu cresci vendo pela televisão. “Amanhã eu vou no Mercado Público com mais tempo”, “o próximo jogo do inter eu vou ao estádio”, “mês que vem eu tiro um dia para conhecer a Casa de Cultura”. Inúmeras vezes passei pela Praça da Alfândega, pelas lojas da Andradas, pelos museus e botecos e nem sequer olhei para o lado.
Não sei quando os museus vão reabrir, quando a Casa de Cultura e meus bares preferidos da Andradas voltam a funcionar, quando vou poder desejar ir a um estádio, quando minhas viagens vão partir da rodoviária novamente. Não que isso seja uma preocupação, sou consciente de que nenhum sentimento ou problema se compara ou se assemelha a daqueles que perderam tudo, mas é a descrição de um sentimento.
Todo mundo sente alguma coisa nesse momento, de diferentes pontos de vista e diferentes ‘lugares de fala’. Mas imagino que um sentimento possa ser comum entre aqueles diretamente e indiretamente atingidos por essa catástrofe, a sensação mais corriqueira e clichê de todas, a de que deveríamos aproveitar o aqui e o agora, pois a gente não sabe o dia de amanhã.
E sem saber o dia de amanhã, quando escrevi esse texto, um dia depois Porto Alegre novamente viveu um dia de pesadelo. Ruas alagadas, vias interditadas. Fui engolida mais uma vez por sentimentos que superam a nostalgia que estava sentindo: pressão de acompanhar as notícias, medo de sair nas ruas, insegurança em sair trabalhar e não saber se e como vamos conseguir voltar para a casa. Todo dia parece o mesmo dia.
Sem dúvidas a gente não sabe o dia de amanhã. O buraco que essa catástrofe abriu em nossas vidas é fundo, cabe muitos sentimentos, muitos textos a serem escritos, muitos clichês a serem ditos, muita história para contar, muita gratidão, mas também muita angústia a se compartilhar.
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