Chora um pouco todo dia, o que também é água. Pesquisa a água, porque tudo que molha se torna, em parte, cumplicidade com essa inundação. A água da lágrima contém água, mas é mais.
A calamidade é um encontro de mundos, mundos que não se tocavam e passam a se atravessar, uns aos outros, a pedir colo, a pedir mão, a demandar urgência. A sociedade da informação se reafirma, na verdade, como sociedade da alienação e da desreferencialização – como se já não habitássemos território nenhum. De repente, como se ninguém estivesse prestando a atenção suficiente, somos engolidos pela força reintegrativa de Gaia, em suas enxurradas catastróficas.
Os que correram da enxurrada do ciclone de Setembro, e mesmo antes daquela, sabem escutar a intensidade da chuva no telhado, escutam o rio e sabem que é hora de sair de suas casas. Mesmo que seja no meio da noite, mesmo que a noite seja incerta… mesmo que não se saiba quantos dias – e quantas noites – tudo aquilo vai durar.
É começo de Maio de 2024. A cidade onde vivo – Porto Alegre – e a região metropolitana, recebem a água de três bacias hidrográficas do estado do Rio Grande do Sul. Com chuvas recordes de mais de 300 mm em três dias, o nível de diversos rios que alimentam esta bacia sobe tanto que varia de 25 metros em áreas de serra a cerca de 6 metros em áreas de planície.
Observo incessantemente as condições climáticas porque trabalho a 300 km de distância, e numa destas noites viajei sob forte chuva de raios. Sim, o céu está caindo, como nos alertam David Kopenawa Yanomami e Ailton Krenak. Um homem morre de raio na noite que viajo, perto do momento em que passamos ao largo da cidade de Santa Cruz do Sul; uma família morre soterrada naquela mesma noite, a quilômetros dali, perto de onde me hospedo em Santa Maria – e os corpos só são encontrados 5 dias depois, debaixo de muita terra molhada. Em meio à tempestade parcamente anunciada, o motorista do ônibus nos leva a Porto Alegre com a urgência de salvar seu próprio corpo, como se a velocidade do ônibus garantisse acordar mais cedo daquele sonho-pesadelo.
Chego em casa com a eletricidade impregnada no corpo. Acordo com a previsão das chuvas chegando a Porto Alegre nos próximos dias. As estradas por onde passamos na noite anterior começam a ser sobrepostas por línguas finas de água que avançam rapidamente. E então trechos de estradas desaparecem, engolidas pela água que tem tom de barro. A separação entre estrada e campo também desaparece. Tudo se torna largo e contínuo. Pontes começam a rachar, e algumas se arrebentam, se quebram como biscoitos gigantes.
Poucos dias depois, na cidade da bacia onde vivo, a 15 minutos de bicicleta de minha casa, vou em busca do viaduto que, em meio urbano, se torna ponto de resgate de pessoas que ainda saem de suas casas inundadas ou tornadas inacessíveis pela subida das águas – ali chegam pessoas dos bairros Sarandi, Humaitá, Vila Farrapos, São Geraldo. Não, ninguém foi alertado pelo poder público sobre a subida real e inundante das águas. Me surpreendo com o cheiro de gasolina, os barcos infláveis, as “voadeiras”, as roupas de pesca, a mistura entre civis e policiais. A imensa quantidade de civis resgantando pessoas, animais, o que se conseguiu carregar. A água toma conta da cidade e faz desaparecer tudo o que depende de rodas. A percepção tenta se ajustar. Sou transportada para a Amazônia, mas falta a floresta. A água pede navegação, reverte uma territorialidade onde a dominância era a da terra – na verdade, do cimento e do asfalto. Transformação radical, reviravolta, intrusão ou ira de Gaia, como diz Isabelle Stengers.
A cabeça viaja entre as projeções que viemos fazendo – a subida da temperatura global – e as catástrofes que estamos já vivendo há 10, 15 anos no sul do Brasil. O desequilíbrio e a destruição se tornam palpáveis, assim como a razão daquela separação e alienação entre humanos e o que passamos a chamar de natureza, como se fosse outrem que não nós mesmos. Não, nós não escutamos suficientemente o alarde ora calmo ora desesperado – e sob extrema violência – dos povos originários.[1]
Narramos entre nós que estávamos mas também não estávamos preparados para isto. Afinal sabíamos a previsão dada pela destruição dos ecossistemas, a equação triste resultante da facilitação das leis ambientais em detrimento da iniciativa privada, a emissão de gases que causam o efeito estufa. O Rio Grande do Sul já foi vanguarda de leis ambientais, agora somos vanguarda de destruição catastrófica. Meu corpo tenta se sustentar entre diversos futuros colapsados, colapsados em minha frente, comigo.[2]
Há anos vou meio obsessiva com as águas, desenvolvendo cartografias aquosas ou molhadas, como forma de criar coordenadas de situacionalidade, de percepção territorial, de metodologias e pedagogias críticas.[3] Formas de desenhar, de partilhar percepções, de constituir existência. Não consigo me desligar do fato de que a catástrofe é movida pela força das águas – que vêm do céu, que vêm do Oceano Pacífico, da Amazônia. Essas águas – e aquelas que a floresta guarda – poderiam estar correndo no meio das matas, descendo sinuosas as corredeiras, umidificando devagar, molecularmente. (Sabedoria e gestão das águas que a floresta faz…)
Cacique Timóteo da etnia Mbyá guarani, em conversa para o filme Guatá[4] diz que guay de Guayba é como seus avós chamavam esse rio “para todos tomarem água”, sendo “ygua”, o lugar onde a gente toma água, onde a água fica concentrada”. Em alguns lugares de Porto Alegre o Guayba veio subindo lentamente, quase que silenciosamente. Em muitos lugares as pessoas não tiveram tempo de sair, como em Canoas. E também bairros foram inundados pela absoluta falta de manutenção dos sistemas de bombas[5]. Nos damos conta de que a subida das águas – do esgoto, e da lama – em certas regiões da cidade não cabe em nossos sistemas cognitivos, naquilo que conhecemos da experiência de cidade, e da separabilidade até então semi-controlada com as águas marrons do Guayba.
No fluxo das águas, a terra toda se amolece, terra que se move. Em meio à enxurrada e a água que chega por todos os lados, vou obsessiva com os mapas, com medições e alturas de terreno, com milímetros de chuva. Metro a metro, quarteirão a quarteirão, uma cidade que se reconhece em suas vizinhanças – e, sobretudo – com as águas lamacentas e, agora, também dos esgotos. Alguns de nós com acesso à informação, apavorados, prescrevendo o horror, outros sem nem saber que estariam embevecidos do horror, sem saber nadar, sem poder fechar a porta de casa (a porta que já não precisará de chave, visto que logo mais será devassada pela força das águas – e do lixo). 600 mil pessoas tem que sair de suas casas.[6]
As águas carregam tudo mais, convulsionam. Penetram ora lentas ora violentas. Se tornam barrentas, lodosas, não conseguimos saber dos corpos que caem, que rolam, a galharia, os plásticos, os pedaços de carros, de concreto, de muros inteiros carregados, de aço. O plástico desenha percursos, rastros de um modo de vida. O volume se agiganta, a sensação de uma transformação estrutural. O Guaíba sendo o receptor imenso dessas águas confusas, águas que buscam terra, que correm como se procurassem um leito[7], algo que as contenha. Tememos a putrefação de tudo o que é vivo, que recém morre, o que desce a serra, ou a serra descendo. Tememos a água que beberemos.
Aquilo que as águas carregam se torna matéria desconhecida, espectro de vida em transformação. A enxurrada se torna monstruosa, é lama antropocênica – e antropogênica. É lama de partículas, lama desconhecida, que tudo engulfa e a tudo encobre. Outra pandemia. Quando a água baixa, regorgita essa matéria estranha, irreconhecível. É uma lama indigesta de Gaia – ou será que ela vai conseguir engolir tudo isto de novo?
De volta àquele viaduto amazônico-em-porto-alegre, encontro uma cidade dos comuns.[8] Uma cidade onde não é preciso comprar nada, todos os bens foram exproriados, alimentos, roupas, remédios, acolhimento, gasolina para barcos. Transporte, telefone, lágrimas compartilhadas. Ali tudo é comum, sem dono, sem etiqueta, sem cartão de crédito. A recepção para os desabrigados inaugura um mundo que sempre evitamos instalar: um mundo onde dividimos tudo, onde já não somos donos de nada.
A convulsão das águas e a fábrica irrefreável de lama expõem e pedem uma reorganização de tudo, por isto expõem a nós mesmos nosso modo de vida exploratório e indigesto – para Gaia. Os mundos que são reorganizados pela revolta de Gaia apresentam todas as diferenças – sobretudo da gritante riqueza que vivemos. Mas a abundância não está para todos igualmente. Há aqueles que têm carros 4 x 4 e podem resgatar quem precisa abandonar suas casas, há aqueles que não têm botas de galocha para se livrar da leptospirose. A lama confusa é, literalmente, a desorganização que impusemos a essa terra em comum.
Debaixo do viaduto dos resgates, no abrigo temporário, na cozinha solidária, quanto duram nossas utopias?
Dormindo entre sons de helicóptero que resgatam incessantemente, acordamos incógnitos de que calcularemos o impacto da chuvarada em perdas de capital. (Quem poderia estar lucrando, afinal…?). E sim, evidentemente, há pessoas sem trabalho, sem renda, sem alimento.[9] Na cidade grande a barbárie continua. Desenha-se uma cidade temporária para os desabrigados de suas casas enlodadas e demolidas. Um verdadeiro campo de refugiados. Concebe-se que o lixão será também na mesma região – zona norte de Porto Alegre. Multiplicam-se as catástrofes. A calamidade para alguns é, afinal, mais um modo de afirmar poder. E a má gestão pública é uma recalcitrância do suprimento de direitos básicos. É absoluta falência programada, estado neoliberal que facilita tudo para o lucro privado. O diário da enchente não pára de transbordar, e a inundação é tanta, a perda é tão profunda, que ira e a incorformidade demoram para se instalar.
Olho ao redor e encontro meu corpo íntegro, ainda, mas meus olhos, mais que embebidos em águas, agora reconhecem o traço da lama em qualquer lugar – lama impregnada, paredes desenhadas, níveis de inundação. A doença que somos, nosso modo de vida não-indígena, somos engolidos por água-e-terra. As águas baixam – mas nunca sem a ameaça de subir novamente a qualquer momento. A lama que tudo recobre nos asfixia. Devolve casas, bairros, fábricas, ateliês, hortas, todas destruídas. O lodo nos gera repulsa, matéria amorfa e não desejada que é o resultado da equação que nunca quisemos encontrar.
Desejamos que Gaia faça algo, que consuma esta lama. Que a reabsorva, mas ela é lixo sem categoria, descarte descomunal daquilo que produzimos – e também das nossas vidas feitas em objetos, memórias, máquinas, produtos, bens, conforto. A lama regorgitada por Gaia é matéria desconhecida, artificial, miscigenada, indistinguível. Dependemos de Gaia, de uma transformação intensiva. Desejamos que reaproveite nossas sobras – e que nos devolva algo depois de atravessarmos essa camada espessa. Talvez uma terra seca e firme para pisarmos e habitarmos, uma “terra sem males” – yvy marãe’y – como buscam e nos ensinam os Mbyá guarani. Mas Gaia sabe, apenas teremos direito se bem soubermos andar – ou será navegar – por estas terras.
*Para Hannah e Lucas, e muitos companheires com quem caminhamos nesta terra.
Isabelle Stengers. No tempo das catástrofes. Resistir à barbárie que se aproxima. São Paulo: Cosac & Naify, 2015.
[1] Cacique Raoni: ‘Brancos viram o que aconteceu nas enchentes do RS e, agora, têm que se juntar a nós’. Entrevista com Cacique Raoni para a BBC.com.“Parece que agora vocês [“brancos” ou não-indígenas] entenderam o que está acontecendo”. { https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv22k28l24wo }
[2] Aos 17 anos ingressei numa organização ambientalista, a Amigas da Terra Brasil – filiada à Friends of the Earth Inteernational, mas fundada inicialmente no Rio Grande do Sul, ainda nos anos 1970 sob o nome de Ação Democrática Feminista Gaúcha (ADFG).
[3] Trabalho com o amigo geográfico Paul Schweizer, em oficinas de cartografia crítica. Ver o texto Hydrocartography: mapping with waters {https://www.academia.edu/70459998/Hydrocartography_Mapping_with_Waters }
[4] Filme realizado entre 2020-2022 por Jorge Morinico, Lucas Icó, e João Maurício Farias.
[5] “Cidade Baixa e Menino Deus alagam porque casa de bombas precisou ser desligada, diz Melo” {https://sul21.com.br/noticias/geral/2024/05/cidade-baixa-e-menino-deus-alagam-porque-casa-de-bombas-precisou-ser-desligada-diz-melo/}
[6] “O rio só quer passar: tragédia climática no Rio Grande do Sul”. Documentário do Brasil de Fato {https://youtu.be/rTQPE5RUuAw?si=HwH2j5RI1mKTpppX}
[7] Reaparece a suave distinção entre água – yy, e terra – y(v)y, em Mbyá guarani.
[8] Essa “cidade dos comuns” foi meu encontro com o ponto de acolhimento de desabrigados montado por voluntários debaixo do Viaduto José Eduardo Utzig, uma das áreas de resgates da Zona Norte de Porto Alegre. Uma carta escrita pela organização pode ser conhecida aqui {https://heyzine.com/flip-book/9ede4cec58.html} um documento histórico e político deste momento.
[9] As Cozinhas Solidárias do MTST cresceram e muito, também para o interior do estado, aliando comida e organização popular como direitos inegociáveis.
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