Ainda não fui a Porto Alegre depois da tragédia de maio. Há oito anos troquei de capital, vim com muitas malas e apenas uma cuia (hoje abandonada por falta de companhia pro mate) morar em Curitiba. No entanto, é raro eu passar mais de três meses sem dar uma banda na Redenção. Este ano já tinha ido duas vezes.
Ontem meu marido embarcou pra São Paulo, onde pegaria um dos poucos voos pra Canoas, pois tem um compromisso com o Fronteiras do Pensamento (saudades) hoje. Por mais que a gente fale com amigos gaúchos diariamente, eu fico o tempo todo pensando na dor que sentirei ao andar por algumas ruas. Penso na loja onde minha amiga Wendyel vendia suas modas no andar térreo da Casa de Cultura Mário Quintana e no sebo em frente à Taverna onde encontrei o raríssimo e maravilhoso Susan Sontag – Entrevista completa para a revista Rolling Stone. Tem coisas que só Porto Alegre tem e é difícil explicar isso pra alguém que nunca morou lá. E muitas dessas coisas foram completamente destruídas e isso me dói demais, mesmo a tantos quilômetros de distância.
Na sexta-feira, conversando com a Elisabete Drower, personagem do meu livro A mulher que atravessa a ponte, que perdeu tudo pra enchente e com quem eu falo algumas vezes por semana, comentei do sentimento que tenho em relação à cidade. De como tenho vontade e curiosidade de ir já com uma tristeza antecipada ciente de que o que verei não será belo ou animador, muito pelo contrário. Então, ela me contou que não consegue evitar passar na ilha sempre. Segue seu relato – que traduz o que sinto e o que muita gente deve sentir, imagino – sobre o que sobrou de sua casa e de suas relações na Ilha da Pintada:
Bá, Ana, fui dormir lá em casa (na ilha) na terça-feira. Não tem nada dentro de casa, eu tirei tudo. Levei pra praia: a geladeira, as louças e as roupas. Tudo que salvei, levei pra praia. Mas, a Raquel me deu um colchão de solteiro e duas mantinhas, não resisti e levei pra lá, deitei pra dormir. Dá um medo. Íam duas horas da manhã e eu não conseguia dormir. Levantei, tomei um remédio e capotei. Me acordei às 4 da manhã com aquele medo estranho, parece que vai dar uma onda, um medo terrível. Isso que eu não estava lá pra ver o que aconteceu, só vi depois.
Tenho muita vontade de ir lá. Hoje eu vou de novo. Me dá uma angústia. Acho que é pra conversar com os meus, ver os meus. Eu tava acostumada, mas é é muito triste.
Tenho curiosidade de ver o andamento das coisas. Tem casa que atravessou de uma rua pra outra e tá na outra rua jogada. Tem casa que entrou pra dentro do banhado e tu não enxerga mais nada dela. Sumiu. Tinha um rapaz que tinha casa – ele e a mãe dele e a irmã no pátio – a da mae e da irmã ficou metade, mas a dele se foi mata adentro, não tem mais nada.
A ilha ficou completamente destruída. Tanto as mansões com seus muros caídos e vidros quebrados quanto a parte mais pobre. Aí tu tem aquela curiosidade de ir, chega lá é um monte de caminhão carregando lixo, patrola, carro do exército. Ela tá bem assistida, sabe? Tem bastante rancho, bastante água, eles estão dando marmita de noite e de dia, todos os dias.
O Dunga teve lá terça-feira, ele tava distribuindo hambúrguer, bem na hora que eu cheguei. Ele tava tirando foto com as pessoas, as pessoas pedindo pra tirar foto com ele. Eu, inclusive, não fui até ele porque já tinha levado um xis pra eu comer. Porque lá não tem nenhum comércio aberto, não tem nada.
Ontem eu trabalhei no sítio da Raquel, tem bergamota, laranja, pitaya, é um sítio na zona sul, no Lami. Ela me deu um balde de banana e bergamota, eu não ia deixar estragar, né? Então, peguei o ônibus das seis e dez pra Ilha, pedi pro Polinho (meu filho) me esperar na praça, porque o ônibus tá parando só na praça. Larguei as coisas lá pra ele e vim pro centro de Porto Alegre trabalhar, sai sem café. No centro eu tomei um cafezinho com pastel.
A ilha tá fedorenta a mofo, um cheiro ruim de sujeira. Tudo que é casa que tu olha tem mancha de água lá em cima. Tudo muito triste. E ao mesmo tempo, me dá aquela vontade de ir lá. Agora tem luz e tem água de novo, mas eu não tenho nem pia em casa, nem vou comprar nada, não quero nada. Eu quero comprar uma casa em outro lugar. Quando vou lá, faço xixi e cocô no balde. Deito no colchão e fico olhando, não tem nada, retrato, documento, tudo se foi.
Dá vontade de ir lá pra ver se está evoluindo alguma coisa, quando tu chega dá uma tristeza. Eu sigo indo, eu acho, só pra conversar com as pessoas. Aí viro as costas e vou embora de novo, sabendo que vou querer voltar. Mas o que eu busco lá, não existe mais. É muito triste.
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