Dois meses depois do início da enchente ainda tenho dificuldades em me situar e, inclusive, de acreditar em tudo o que vi. Mesmo que meu trabalho seja documentar o que vejo à minha frente, me custa olhar para as fotografias como prova do que passamos. Me parece um sintoma coletivo, quase como de defesa, quando encaramos as marcas altas nas paredes dizendo “inacreditável”.
Quando converso sobre a enchente, seguidamente cometo o ato falho de me referir a ela como “pandemia”. Logo depois de me corrigir e seguir no assunto – normalmente entre amigos que trabalharam nas duas coberturas e também se confundem – penso comigo mesmo que consigo ver a relação entre as duas. Nos primeiros meses de 2020 víamos as imagens que chegavam da China, Itália e Espanha e pensávamos apreensivos que chegaria aqui também, na esperança/expectativa de nos prepararmos para aquilo. Mas não existia a menor possibilidade de nos prepararmos para o que iríamos viver e documentar; assim como nesta enchente.
A única diferença é que uma vimos chegar pelos olhos dos outros; a outra, quando nos demos conta, já estávamos fotografando resgates e navegando por pequenos barcos acima de carros e placas de trânsito, em ruas, bairros e cidades onde todos nós tínhamos alguma memória anterior.
Durante o interminável mês de maio perdi a conta de quantas vezes subi em barcos para registrar o absurdo das águas, resgates de pessoas e animais, mantimentos a serem entregues por janelas do segundo andar, estragos que varriam bairros e cidades.
Pela janela de helicóptero vi lugares que já não existem; peguei carona junto com moradora que tentava chegar em cidade ilhada para acompanhar o velório de seu pai; vi as águas baixarem e depois pisei onde já não havia mais nada a salvar. O que a água levou, se foi; o que ficou, já não sabemos como lidar.
Em mais de uma década na profissão, já testemunhei algumas tragédias e muitas tristezas. Alegrias também, mas nessas horas não costumamos lembrar disso. A ansiedade de cobrir essa tragédia começou a se manifestar por volta da segunda semana.
Além de noites mal dormidas, acordava de madrugada apreensivo com a quantidade de chuva que caía forte do lado de fora. A água não chegou onde moro, mas todos os dias saía de casa lendo os relatos de familiares, amigos e conhecidos atingidos que perderam tudo.
Até agora, foi a cobertura mais difícil que já fotografei.
Lembro que, no dia 3 de maio, fui pautado para registrar o avanço do Guaíba no centro de Porto Alegre. Nas primeiras horas daquela tarde, enquanto caminhava pela Avenida Mauá ainda quase seca, pensava comigo mesmo que não sabia exatamente o que fotografaria; achava que estava entrando “atrasado” na cobertura, que deveria estar em outro lugar fazendo outras fotos, que a água estava do outro lado do muro e apenas podia caminhar ainda tranquilo com a galocha do lado de cá. Caminhei e fotografei ruas do centro, num silêncio que nunca tinha presenciado ali.
Menos de três horas depois de pensar essas ideias tortas, me dei conta que a cobertura estava recém começando e que, de fato, eu iria fotografar coisas inimagináveis; pensava isso enquanto a água tapava minhas galochas na metade na praça da Alfândega. Três dias depois faria esse mesmo trajeto, mas de bote.
Naquele momento Porto Alegre e eu entramos num modo de espera. O que havia visto até aquele início de maio já parecia distante e muito diferente do que a cidade submergida me mostrava. Ficava pensando quando tudo isso acabaria, mas, enquanto fotografava, já ia percebendo que não seria tão cedo.
Demorou – e muito-, mas a água baixou.
O modo de espera continua, impregnado pelo mofo e barro que ficam quando some a água.
Dois meses depois, com ou sem minha câmera, eu vejo que a água atingiu até onde não chegou.
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