*Texto enviado em 22 de maio de 2024
(leia esse texto ouvindo Quando a Gira Girou de Zeca Pagodinho)
Quando a gira girou, ninguém suportou
Só você ficou, não me abandonou
Quando o vento parou e a água baixou
Eu tive a certeza do seu amor
Dia 27 de abril de 2024. Menos de uma semana de nossas vidas serem transformadas totalmente, eu estava num dos lugares que mais amo na cidade que nasci, cresci e agora tento sobreviver. A Casa de Cultura Mario Quintana é cenário da minha vida desde sua inauguração em 1990. Minha vó me levou em sua abertura e uns anos depois sugeriu à minha mãe que me matriculasse na Oficina de Artes Sapato Florido. Ao longo da minha infância e adolescência, aquele imponente prédio cor de rosa estava lá embelezando meus dias com as aulas de artes, as visitas às exposições, as sessões de cinema depois das aulas ali em cima nas Dores.
Subi algumas vezes no palco do teatro Bruno Kiefer como artista, assisti a diversos espetáculos, tenho zilhões de memórias especiais com um dos locais mais charmosos de Porto Alegre. Em 8 de março de 2023 fui até o terraço para fazer uma reunião com a Germana Konrath, diretora da CCMQ. Foi nesse dia que nasceu o Samba do Quintana. E a partir dali, a Casa, que já fazia parte de memórias lúdicas e coloridas, de experiências artísticas em cima do palco e na plateia, também se transformava no local de um dos projetos mais bonitos que eu já criei. Ao longo de todo o segundo semestre do ano passado e duas edições esse ano, lotamos a Travessa dos Cataventos mensalmente com um evento totalmente popular, acessível, diverso. Foi ali, naquela rua que liga a Andradas e a Sete de Setembro, que eu vi um mar de gente congregando através de uma das manifestações mais brasileiras e democráticas que existem, a roda de samba. Foi ali que eu me convenci que ainda não era hora de ir embora de vez daqui.
A Casa é meu ganha pão, um lugar de muitas amizades construídas, de descobertas, aventuras, beleza. E foi lá que eu decidi celebrar meus 40 anos. A chuva forte assolou a tarde e a noite daquele sábado e a gente brincava com cada convidado que chegava se tinham vindo de Uber Bote ou Uber Gôndola. O mau tempo em comemorações é um clássico na minha vida, nada parecia estar fora do lugar. Num dos dias mais felizes e bonitos da minha existência, eu estava em uma das minhas casas preferidas no mundo. Mas nada será como antes.
29 de abril – o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) emitiu o primeiro alerta vermelho de volume elevado de chuva. Na madrugada do dia 28 para o dia 29 sonhei com uma casa cheia de escombros, sujeira e ratos que eu tentava matar. Eu tenho pavor de ratos, cheguei a levar o assunto para a análise. Que medo é esse que estou tentando caçar?
30 de abril – adiamos a edição de maio do Samba, por precaução de produção. Mas tudo parecia muito menor e menos devastador. Era só uma chuva forte e um pouco de alagamento.
3 de maio – O Guaíba ultrapassou a marca histórica de 1941 e alcançou o nível inédito de 4,77 metros. Insisti que meu irmão, que ia para o show da Madonna no Rio, adiantasse o voo. Com a água tomando conta da cidade, sabia que poderia chegar ao Aeroporto. Acertei as duas vezes, mas ele conseguiu viajar.
4 de maio – como se faz uma mala para abandonar a própria casa e fugir de uma enchente? Eu não soube fazer a minha e talvez nunca seja capaz de saber. Saí de casa com minha cachorra, uma mochila e uma bolsa de viagem pequena, por precaução apenas, para passar uns dias na casa dos meus compadres e afilhado. Como já repeti mil vezes, quero ser lembrada por ser fiasquenta e exagerada. Mas jamais como negligente.
Desde que a água começou a subir pela Mauá, a única coisa que eu conseguia pensar era na Travessa. A água não espera. Ela simplesmente vem. A cada foto, vídeo, post nas redes sociais de barcos navegando pela ruazinha que há poucas semanas eu posava vestida de verde e rosa, um pedaço meu se vai. Não são apenas as nossas memórias de infância, as lembranças de dias felizes, o cartão postal. É o cenário de tudo que se desfez ao longo desses longos e difíceis dias. É o desalento das salas de cinema encharcadas, da livraria com água na altura do balcão, do Térreo Bar com os equipamentos colocados pra cima dos móveis, numa tentativa de minimizar o que desse. São sonhos, projetos, memórias, todos afogados por lama e descaso público.
6 de maio – A água no Guaíba alcançou 5,33 metros. Desde 3 de maio acesso mais de 20 vezes por dia os perfis da prefeitura, DMAE, Ceic e do Instituto de Pesquisas Hidráulicas. Nunca imaginei na vida que fosse me interessar tanto por medição de rios, direções do vento, estações de tratamento e distribuição de água e vibrar por um centímetro a menos numa régua. A água chega no Menino Deus. Volto para casa, molho as plantas, pego mais roupas, documentos e tiro tudo que tem na geladeira. A inundação não deve chegar na minha quadra, mas certamente faltará luz e água no prédio. A sensação de não saber quando vou voltar é muito esquisita.
7 de maio – me transfiro para a casa dos meus pais, que estão fora da cidade, de férias. Ao lado da casa deles inicia uma reforma. Que estranho começar uma obra no meio das chuvas, eu penso. É um outro tipo de vizinhança que vem habitar a rua: um abrigo de cães.
11 de maio – Uma amiga de SP me envia uma mensagem: “espero que no meio dessa loucura você esteja bem. Vi esse vídeo e quis compartilhar com você”. Era um vídeo do Paul McCartney. Pela primeira vez senti uma ponta do que poderia ser esperança. Parece pandemia, só que pior. É assim que eu tento explicar para quem está longe daqui tentar entender. Porque não há lugar seguro para quem ficou. Há locais secos e com estrutura básica, mas a sensação de segurança foi junto com a enxurrada que dizimou nosso Estado. Quase não circulei pela cidade. Me sinto uma foragida num bunker onde tenho água, luz, internet, aquecimento, comida e uma adega invejável. Aos olhos de quem está fora desse filme de fim de mundo, pareço ótima. Mas não há chance de se estar bem. Estamos a salvo, saudáveis, ativos para fazer o que for possível para ajudar. E nada é suficiente. Conheço pessoas que estão há dias e dias trabalhando incansavelmente, gente que mal prega o olho à noite pensando em quem mais pode mobilizar para conseguir doações, amigos que praticamente se mudaram para um abrigo para auxiliar quem não tem mais nada para chamar de seu. Gente que não tem onde se agarrar para se manter em pé. Há quem esteja vivendo um luto imenso, paralisados pela dor. Quem conseguiu ir para outro lugar seguro. Quem tenta voltar para Porto Alegre e não consegue chegar. Todos nós estamos de alguma forma sem casa. Mesmo quem está embaixo de um teto. Porque o cenário de nossas memórias, dos lugares que fazem parte do que somos, tudo isso foi engolido pela água.
13 de maio – É dia dos Pretos Velhos na Umbanda. Fui batizada na religião e sou afilhada de uma Preta Velha chamada Maria do Balaio. Minhas memórias desse dia são felizes, com a cozinha da casa da minha avó perfumada, a casa cheia de gente. Servi um cafezinho, acendi uma vela branca e coloquei “Andar com Fé” do Gil pra tocar. Pela primeira vez desde que tudo começou, chorei.
Ao longo de todo esse borrão de tempo em que tentamos nos manter minimamente sãos, a salvo, tentando ajudar quem perdeu tudo, eu só consigo pensar no que vai ser quando essa água baixar. Quantos precisaremos para limpar e colocar tudo no lugar? Onde estarão o prefeito e o governador, que fogem de assumir suas responsabilidades nesse filme de terror? Será que quando chegar a vez de reabrir as portas do Hotel Majestic, que passa por sua segunda enchente, ainda teremos algum fio de esperança? Teremos vontade de cantar a plenos pulmões um samba do Arlindo Cruz ou a voz terá se perdido? Quando que a gente vai poder pular de uma sessão pra outra correndo pela Travessa? Será que poderei celebrar meus 41 anos nesse lugar que amo tanto e que tanto me deu? Será que eu consigo devolver para essa casa a sensação de lar?
15 de maio – percebo que estou há dias sem sair de casa, só correndo no mercadinho da esquina. Saio de casa e ao entrar no Uber penso: esqueci a máscara! Um flashback mais que assustador e que descobri que muita gente já teve. Trocar a palavra enchente por pandemia também é fato recorrente.
17 de maio – Comecei a escrever esse texto. Há duas semanas exatamente a nossa vida foi colocada à prova, nossos lares levados pela água, vidas e histórias inteiras sucumbiram. A capital acumula um bilhão de litros d’água em suas ruas no dia de hoje. Mesmo dia que a Comporta 3 do Cais foi aberta para escoar de volta pro Guaíba. Ela fica próxima à rua Padre Tomé. E só vendo mesmo pra crer que um dia essa água vai baixar e vamos voltar para esse lugar que chamamos de casa.
Minha sensação hoje, depois de muitos altos e baixos, de dias de trabalho para ajudar quem está precisando do mínimo, dando suporte a quem está perto e longe em dor imensa, pulando de casa em casa, é que a Enchente de 24 é algo que nem nos nossos piores pesadelos pandêmicos a gente seria capaz de imaginar. Ninguém está bem: quem agradece por estar a salvo e seco está mal, imagine quem tudo perdeu. Mas ao mesmo tempo nos colocamos em perspectiva e valorizamos coisas que até quinze dias atrás eram muito pequenas ou passavam totalmente despercebidas. Como a alegria de tomar banho de chuveiro e poder lavar o cabelo, ter uma roupa limpa e quente pra trocar, conseguir encontrar quem a gente ama, abraçar essas pessoas e dizer: estamos bem. É um outro tipo de bem, mas é ele que vai segurar as pontas até a gente enxergar um pinguinho de esperança brotando de algum lugar. Nada será como antes.
22 de maio de 2024. Hoje, pela primeira vez desde aquela sexta-feira de terror, eu chorei de felicidade. Numa foto muito simples, que até poucas semanas atrás seria mais do mesmo, hoje, me levou às lágrimas, gordas, de alegria, de alívio, de esperança. A Travessa dos Cataventos reluzindo de limpa, com o sol ao fundo, quase caindo. Daqueles fim de tarde gloriosos que a gente ama assistir lá do alto da CCMQ. Ainda temos muito o que fazer, há muita água para baixar, muitas feridas para cicatrizar e muito o que recuperar e entender. Mas a luz no fim da travessa avisa: vai passar. E o sol há de brilhar mais uma vez.
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