Publicado originalmente em juliaydantas.substack.com
“Obrigada por colocar em palavras o que eu não conseguia”, me responde a Ana numa conversa sobre uma das incontáveis facetas péssimas dessa catástrofe em andamento. Dias depois ela me pergunta se eu estou pensando em escrever. Naquele momento, eu só pensava no meu apartamento com água pela cintura, sentia meu cérebro frito ou derretido e não conseguia nem ler. Mas ela tem razão, colocar coisas em palavras é um dos meus poucos talentos, e tem sido meu método mais confiável de sobrevivência e de conexão com os outros. Por isso este texto existe, para que meu cérebro volte a se comportar como um cérebro e para criar a possibilidade de que outras pessoas tenham aqui uma organização de palavras que elas precisavam mas não encontravam.
Na sexta-feira antes de tudo, nos preparamos para um grande temporal. As ruas começaram a acumular água, então o Felipe voltou mais cedo do trabalho e tínhamos comida para atravessar o final de semana. No sábado as previsões de chuva pioraram e decidimos criar uma barreira de contenção na porta dos fundos, mais por alívio de consciência do que por acreditar que a água chegaria até ali. O Guaíba não está tão perto, e há um parque com uma grande elevação entre nós. Mas a água vinha subindo pelos bueiros e, por via das dúvidas, vestimos sacos de lixo sobre as pernas, colocamos as botas de borracha e atravessamos a rua com água acima dos joelhos para ir até a ferragem. Apesar da rua nunca ter ficado assim antes – ou justamente por isso – ainda estávamos confiantes. Levamos a cachorra conosco, pra ela fazer xixi e caminhar.
O resto do bairro estava absolutamente num dia normal ensolarado. Pessoas batiam papo na barbearia, todo mundo olhava estranho para as nossas pernas plastificadas. Estávamos otimistas. Compramos até umas cervejas e uns croquetes de carne antes de voltar para casa. Então começamos a levantar a barreira. Postei uma foto quase engraçadinha. Envolvia lona, fita adesiva, tijolos e espuma de vedação. Depois nos unimos aos vizinhos na construção da barreira na porta do edifício. Felipe carregou sacos de terra e cimento, alguém apareceu com uma pedra de mármore, eu enfiei meu tapetinho de yoga na fresta da porta. Ficamos orgulhosos do nosso trabalho, pareciam boas barreiras.
Antes de dormir, colocamos o despertador para tocar a cada duas horas, assim poderíamos agir caso o cenário se agravasse. Não precisamos de mais de um alarme. À meia-noite, a água tinha se infiltrado pela porta do edifício. O Felipe saiu para melhorar aquela barreira e para retirar a água que invadia o corredor. Cheguei a ficar zonza com a quantidade de vezes que ele passou por mim carregando um balde cheio de água suja para ser virado pela janela, para a calçada no nível abaixo do prédio. Enquanto isso, criei uma barreira adicional na porta do apartamento e, logo depois, entre a área de serviço e a cozinha, pois a água tinha começado a subir pelo ralo apesar dele estar tapado. Quando ficou claro que a água seguiria entrando no edifício, concentramos nossos esforços no interior de casa. Nossa ideia era ganhar suficiente tempo para que o nível se estabilizasse e no dia seguinte começasse a baixar.
Perdi a noção das horas, sei que passamos a noite em claro, contendo a água que vinha pelo corredor e retirando água da área de serviço com o balde. Até que tudo começou a ruir. A água passou a entrar também pelo ralo do banheiro e, lá na porta de entrada, superou a altura da barreira, que até então reduzia o fluxo. Depois vieram os momentos que acabaram conosco: a água que brotava do chão e a água que atravessava a parede.
Eu estou aqui para tentar colocar em palavras o que foi e o que está sendo viver essa coisa, mas há momentos que a linguagem não alcança. O melhor que eu posso fazer é dizer que se algum dia eu virar cineasta e fizer um filme de terror, essa cena estará lá: a água brota por entre as junções do piso de madeira em manchas escuras mínimas que rapidamente ganham tamanho e se espalham indiferentes aos panos e às folhas de jornal com as quais se tenta suprimi-las. Outra cena: a água começa a atravessar por baixo a parede compartilhada com a vizinha e a parede que nos separa da rua, e, pela primeira vez na vida, a mocinha do filme se pergunta o quão sólida costuma ser uma parede. Ela pensa que o apartamento desocupado da vizinha deve ter virado uma piscina e não quer acreditar que o seu vai ser o próximo. Horas depois, a mocinha pensa também na ingenuidade dos panos, das folhas de jornal, da barreira que tentou segurar meio metro de água. São pensamentos demais para um filme de terror, eu sei, eu não disse que seria um filme bom.
É que é uma imagem difícil de explicar. Penso nos vídeos bonitos de pequenas nascentes de água no meio do verde da natureza. Um vital presente da terra para a vida na superfície. Exceto que foi todo o contrário. Um pequeno nascedouro de horror no piso da sala, depois no quarto ao lado da cama, depois nem sabemos mais. Eu não tenho repertório imagético para isso.
Foi aí que desistimos. Não tinha como lutar contra água subindo do chão. Nos abraçamos, choramos por um minuto ou dois, e começamos a arrumar as coisas para a saída.
Contando tudo aqui, parece que deveríamos lamentar ainda mais o desfecho após tanto esforço em vão. Mas, de um modo que não sei ainda descrever, o fato de termos feito tudo que estava ao nosso alcance – e as dores no corpo nos dias seguintes atestam que fizemos até mais do que o que estava ao nosso alcance – traz uma espécie de paz de espírito. O fato de que falhamos no nosso objetivo não anula a dignidade da nossa tentativa.
Também não anula a dignidade de quem logo saiu da sua casa. Muita gente queria que nós tivéssemos feito o mesmo. Talvez nós façamos na próxima, se houver uma próxima. Todo mundo tem direito a se afastar de uma inundação seja porque essa é a escolha mais racional, seja por medo, seja por solidão, seja por não querer ver sua casa tomada pela água. Eu entendo esse sentimento agora melhor do que nunca.
Eu também não quero mais. No terceiro dia após a nossa saída, ouvindo inúmeros relatos de roubos e arrombamentos no bairro, cogitamos voltar até lá para colocar um cadeado na grade da porta, desprovida de chave. Não pude ir. Não consegui nem tentar. Eu não tinha como entrar de novo na casa alagada. Essa é a imagem que me volta nas madrugadas insones e, mais do que uma imagem, é a sensação física de empurrar a água com as pernas cuidando para não respingar no que ainda estava seco. Talvez eu consiga escrever sobre isso daqui a alguns anos.
Saímos de manhã cedo. Na rua, a água chegou a bater na minha cintura. Cruzamos a praça em frente ao edifício duas vezes para dar conta de levar as mochilas e a cachorra. Meus pais nos esperavam do outro lado, o banco do carro forrado de plástico para que sentássemos sem molhar tudo. Não sei quem estava mais incrédulo com a situação, se nós, se meus pais ou se a cachorra. Minutos antes, no colo do Felipe atravessando a água, ela mexia as patinhas no ar como se nadasse. Nos olhinhos, um novo tipo de medo e atordoamento.
Ao longo dos dias seguintes ou, se eu quiser ser honesta, num ritmo de ansiedade de hora em hora, minuto a minuto, acompanhamos os relatos e fotos no grupo de whatsapp do bairro, onde víamos a água subir mais e cada vez mais. A cada palmo, eu pensava em qual prateleira da estante de livros a água estaria batendo agora, quais objetos e roupas que acreditamos que ficariam seguros estavam submersos. Não sou especialmente apegada a coisas materiais e definitivamente não sou uma pessoa belicosa, mas acho que eu seria capaz de incendiar todos os brinquedos de infância da próxima pessoa que me disser que perdemos apenas coisas.
Nunca são apenas coisas. Salvamos os instrumentos musicais do Felipe, uma parte de quem ele é e do que ele faz. Também acho que salvamos uma mesinha que era da minha bisavó, parte do percurso da minha família. Mas já é certo que perdemos o sofá que pertenceu ao avô do Felipe e a mesa comprida que eu fiz sob medida anos atrás, sobre a qual escrevi quase dois livros inteiros e que estava prometida de presente para o Fred, com quem seguiria sua missão literária. Perdemos livros com dedicatórias, cadernos antigos escritos de cabo a rabo, palavras que nos acompanharam por anos, e agora não mais.
Perdemos nossa poltrona verde, e ela não tinha pertencido a nenhum antepassado nem era dotada de nenhuma característica única. Mas foi a poltrona que compramos juntos depois de caminhar mais de quatro quilômetros entrando em todas as lojas de móveis da avenida Ipiranga porque queríamos achar uma que fosse confortável para os dois, mesmo com nossa significativa diferença de altura. Foram horas de busca, até que achamos a poltrona perfeita para as nossas costas e pernas. Por isso não era apenas uma poltrona, era a poltrona que trazia em si a história da nossa decisão de morar juntos: criar uma vida que pudesse abraçar a ambos, com nossas diferenças. Não tem como ir na loja comprar isso.
Meus pais nos acomodaram em casa e minha mãe desde então se oferece de motorista. Dois dias depois da nossa saída, levamos água para a Gabi que está ficando sem ter o que tomar. Buscamos na minha tia uma bombona vazia porque os lugares que ainda vendem água só o fazem para quem leva o refil. Vamos até o meu bairro com um binóculo para tentar avistar o apartamento e medir melhor a subida da água, que só temos visto por fotos desfocadas e vídeos tremidos dos barcos de resgate. Mas a parte seca do bairro já está longe demais do meu edifício para que seja possível acertar um ângulo de visão.
A cachorra está perturbada até hoje. Ela dormiu por dois dias, só acordando para necessidades básicas e para latir contra todos os barulhos desconhecidos, mais assustada do que nunca. Afastou todos os cachorros que tentaram se aproximar nos passeios. Regrediu a traumas de infância: depois de anos, voltou a ter medo de pessoas com grandes sacolas nas costas. Está reativa e arisca. No primeiro dia de chuva depois de tudo, rosna para os meus pais e já tentou morder os dois quando eles fizeram movimentos bruscos. Eu não sei bem o que fazer por ela, mas entendo. A cachorra também perdeu a casa.
Coisas significam tempo de trabalho, postou a escritora Gabriela Leal. Eu ainda nem tenho orçamentos e já me assusta a ideia de quanto tempo de vida custa a reposição de um piso. Quantas horas, semanas, meses de trabalho? Antes de tudo acontecer, Felipe e eu vínhamos planejando uma viagem ao Chile para o ano que vem. Tínhamos calculado quanto seria necessário economizar por mês para poder viajar. Quantos frilas meus, quantos plantões dele. Nem imagino quantos Chiles custa a metade da mobília de uma casa, mas vamos ter que descobrir. Não são só danos materiais, são sonhos que a gente deixa de lado porque de um dia pro outro precisa voltar a tornar habitável o lugar que antes era o nosso lar.
No quarto dia depois de tudo, vou na casa da Manu levar água potável e usar a internet. Eu conto os acontecimentos como se narrasse um livro: foi assim assim assado, isso e aquilo outro. Falo que estou muito puta e muito triste. Fico surpresa por não chorar. É a primeira vez que conto a história inteira de uma vez só. Me emociono, mas não choro. Vinte minutos mais tarde, me vejo no supermercado secando lágrimas na frente dos congelados porque olho para uma caixa de lasanha e penso na que ficou na nossa casa, agora abandonada sem eletricidade.
A frente fria se aproxima e a Ana vem me visitar para me emprestar roupas de inverno. Depois de um café, ela vai embora e eu abro as duas sacolas. Percebo o equilíbrio bem pensado entre blusões, casacos, meiões e até dois tipos de cachecol, um leve e um de lã. Uma amiga que dedica carinho e atenção a uma sacola emergencial de agasalhos é uma amiga que entende isto muito bem: não são apenas roupas.
“Eu sonho com as nossas coisas apodrecendo lá dentro”, eu digo no WhatsApp para a Irka Barrios, amiga escritora que está com a casa debaixo d’água, em Canoas. “Eu também”, ela responde. Reajo com uma carinha triste. Hoje faz uma semana que saímos de casa. Todas as minhas carinhas no menu de uso recente são carinhas tristes.
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