*Texto enviado no dia 17 de maio de 2024.
Saí de Lajeado debaixo de chuva.
Antes de chegar a Osório, o céu se abriu para o sol. E comemorei, assobiando uma canção que ouvia na rádio Cultura.
Segunda-feira, minha filha mandou a mensagem, mãe, o rio tá subindo muito depressa.
Em quatro dias, o vale, incomunicável.
Nem sei quantas inundações já vivi.
Lembro-me de uma que levou até as bolinhas de Natal. Escaparam pela janelinha do porão, boiando lindamente num janeiro dos anos 70. De outra vez, a enchente pegou de surpresa o circo instalado no valão. O gerente, e também domador, salvou o elefante e dois pôneis, atados em uma árvore da praça. Em outra ainda, embarcamos na bacia de zinco feito bote – depois, a surra. Sim, a desgraça dos adultos não é a mesma para as crianças. O bom era que por um tempo não tínhamos aula porque as salas também estavam submersas. Quando voltávamos à escola, o deboche, o bullying de hoje: “abobada da enchente”, coisa antiga que só fui descobrir o porquê, já adulta.
– Mãe, tu não passa mais na ponte. Fica aí.
A enchente do último setembro foi uma catástrofe. Agora não encontro adjetivo para essa última, de maio de 2024 e acompanho a destruição pelas redes sociais e noticiários.
No dilúvio do ano passado, arregacei as mangas, calcei botas e corri de um ponto a outro. Nesse, lavo os olhos. Sei que há outras formas de amparar conhecidos e desconhecidos. Mas o pix é frio, impessoal. Ajuda que aquece é uma prima distante liga, quer informações. Conseguiu uma boa verba para a reconstrução de abrigos infantis, em Lajeado e Arroio do Meio. O Volúpia, bar e espaço cultural lgbt, mais uma vez se organiza para ser ponte entre desabrigados e voluntários. As sócias de um clube se unem para adotar famílias inteiras – do aluguel até remédios. Outra turma foi para a cozinha preparar marmitas. Outra, para entreter crianças nos pavilhões. Mas há quem reclame dos flagelados que não ajudam, as que choram as bolhas nas mãos de tanto empunhar os rodos. Lembro Chico Science, da Lama ao caos: Ô Josué, eu nunca vi tamanha desgraça, quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça… Sim, ainda precisamos lidar com a enchente de notícias falsas, aluvião político, o lado B do verdadeiro lodo. Pena que uns não afundam para sempre, penso como abobada que sou.
A correnteza marrom levou tudo: crianças, velhos, animais, brinquedos, telhados, as paineiras que ainda resistiam ao abate humano, à margem do Taquari. As águas volumosas dos nossos rios carregaram um bairro todo, com suas casas e comércio. As ruas conectaram riachos que inundaram o bar do tráfico e das prostitutas, a república dos senegaleses, a lojinha do Mor, a associação comercial, o Sesc, as creches, o salão do Nilo, a indústria de vinagre, o posto de gasolina, o bric de móveis usados, a igreja matriz, a praça, prefeitura, a biblioteca, a banquinha de revistas.
Encharcou de lama o apartamento da professora, a casa do maestro e a mansão do prefeito.
Desta vez não descontou só dos pobres, mas se vingou dos ricos e de toda estupidez humana.
Sim, as águas vão baixar, deixando o rastro fétido da morte e da corrupção.
Não sei se quero voltar.
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