Aos sessenta há quem pense que não se ganha mais nada, só se perde: cabelos, memória, a libido, o senso (é o fundo do poço, é o fim do caminho?) e que com as rugas chegam as dores (ainda mais em tempos de leptospirose e chuva), artrites e artroses, mas não vamos levar as coisas para o lado médico, pois você há de concordar que, numa manhã assim tão úmida, melhor não se deixar deprimir, porque se vamos para a enfermaria, meu amigo, se a sua próstata ainda não cresceu, aviso: crescerá, não importa o quanto você comeu de tomates em vida. Veja só, os tomates, os tomates são vermelhos e dizem que fazem bem para a próstata, o tamanho pode variar, mas são tão lindos, — e quanta coisa boa se faz com eles: cozidos, assados, ebulindo nos molhos mais densos, acompanhando as burratas mais cremosas, frios e líquidos no gaspacho, pordeus, que invenção! Deus, pode apostar, se existe, Ele fez grandes coisas antes de descansar no sétimo dia, a Amazônia, a neve, os mares da Croácia, Elis e Tom e os tomates. Tomates não dão assim como chuchu na cerca, mas estão por todos os lugares, e eu vou lhe contar um segredo agora: sumiram! Fui ao super ontem já que as feiras de rua estão fechadas (porque não há ruas) e só encontrei uns tomatinhos mirrados-meio-murchos-em-caixinhas-de-plástico-a-preço-de-ouro. Não sei se você assistiu, é um filme antigo e nunca passou na sessão da tarde, mas me deu um frio na barriga: organizam-se eles em comandos e logo estarão de volta? A volta dos tomates assassinos? E se eles como as águas desse maio invadirem a cidade pelos diques, muros, casas de bombas? Tomates invasores subindo pelos bueiros? Meu Senhor, um pesadelo, os frútis sumiram todos, to-dos! O que sobrou no super? (é o mistério profundo!). Venha correndo comigo e troquemos já de assunto, pois não é bom se assustar em meio a tanta umidade, e aproveito para lhe contar outro segredo, pois hoje liguei o modo confessional: eu odeio supermercado! Se puder passar longe, passo, mas de casa, entre um novo rio e outro, me mandam um recado (e em casa, quando me mandam, melhor que eu obedeça, isso aprendi com o tempo, é a marcha estradeira), e assim entrei no Zaffari, focado! Nem parei nas verduras, e vou lhe segredar de novo, não porque houvesse alguma, nem um talo de salsão, mas porque não havia sido orientado a adquiri-las, pois a mensagem era clara e, ao menos ela, seca: “compre água”. Nas entrelinhas havia muito mais, que subtexto, e já imaginei com a missão mal cumprida as minhas roupas boiando na correnteza defronte à casa, meias e cuecas enroladas nos fios da Equatorial, nadando entre ratos, fezes e tantos restos, e pensei na ceroula cor-de-laranja que comprei numa emergência no Ártico: e se ela estacar num velho fio da CRT preso num galho morto? Já posso ouvir os comentários, as troças em torno à mesa de jantar de tanta gente que não me olharia mais ao me encontrar no elevador (quando tirarem do poço o lodo e eles voltarem a funcionar), narizes empinados em reprimenda, e a Vizinha do 601, logo ela, tão distinta, essa, então, nunca mais subirá no elevador comigo — e não é que em pesadelo (é a chuva chovendo) ouço gritos? Dobro a curva do corredor mais próximo com meu carrinho vazio em tempo de achar a fonte. Desvio rápido porque tenho idade, mas tenho reflexos, pouco antes da Perrier explodir a meu lado em cacos verdes e confusão, e do meio da desordem sai a Vizinha com sua bombona, feliz. Nem me olhou, you bet, deve ter visto a ceroula! Em segundos, não há mais ninguém, decerto manaram para outro super, e saio de trás do carrinho onde me escondia, pronto para atender ao chamado — “compre água” — e não há mais nada, nem uma garrafa na prateleira, nem uma pet perdida, Crystal, Minalba, Da Lomba, Da Pedra… minto!, olhe ali, você viu?, na prateleira mais alta tem uma Voss, uma garrafa de vidro, grande, cilíndrica, bela, a água ali de dentro me olhando e eu olhando para ela, e toca uma música de comercial de margarina, e antecipo minha família feliz dividindo o tesouro, um copo de água, não me importa o preço e vou-me em direção à garrafa, lembrando-me da estação de trem de Voss, na Noruega, a neve, o frio, as quedas d’água, a elegância, e a música fica mais alta, a cena em câmera lenta, e assobio, sincopado (é pau, é pedra), e, quando abro os olhos, minha Voss se foi com a Vizinha, que desta vez me olha e me fulmina — com classe, mas fulmina (é o fim do caminho!). De meus olhos transbordam águas, como nunca, Senhor, como nunca, pois nem recorrer à Amazon posso, vivo no único lugar do mundo onde não há entrega, e minhas lágrimas inundam a saída do estacionamento por onde vou tentar passar com meu carro que sofre sem a gasolina que nos postos está em falta para chegar à casa que estará cerrada para mim — e me restará a rua! Que amargura, nunca mais poder voltar para casa. O que eu ganhei com isso, o que eu ganhei nesse maio todo, você me pergunta, o que eu ganhei, o que eu ganhei? Soluço, quase sem voz: eu ganhei, eu ganhei, eu ganhei … o meu medo da chuva.
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