Nos primeiros dias de maio, quando as nuvens previam o caos e algumas cidades já estavam alagadas, eu me recostava na cadeira e assistia televisão, via a desgraça vizinha, mas sem noção da gravidade. Minha ignorância seria contestada pelos céus logo dois dias depois. O rio marrom subiu mais alto do que a velocidade que alguns tinham para fugir, e em uma noite milhares perderam tudo que um dia já tinham tido.
A água chegou a uma quadra da casa da minha namorada. Só recuperamos a luz uma semana depois que todos os outros bairros. Só recuperamos a água três semanas depois disso.
Nós passávamos a tarde em abrigos nas escolas que um dia tínhamos estudado. Isso foi durante as duas primeiras semanas. Na terceira, meu trabalho precisou que alguém ficasse na sede do jornal, porque todos os outros estavam indisponíveis. Metade dos meus colegas perderam tudo, e a outra metade deles ficaram sem acesso. Às vezes eu tinha luz, às vezes água.
Na segunda semana, minha família ajudou a abrir um ponto de coleta de doações em um local no centro da cidade. Seguimos noite adentro limpando um galpão que íamos usar. Eu espirrava e suava de tanta limpeza. Na outra manhã, já começamos a receber as doações. Caminhões e camionetes de todo o Brasil trouxeram comida, água, roupas, remédios, utensílios de higiene e até máquinas de lavar.
Quando tinha tempo, eu organizava as doações e entregava, e quando não tinha, anotava os pedidos dos abrigos para no outro dia entregar. Agora, com o serviço, faculdade e outras atividades na minha rotina, não consigo mais ajudar como queria. Mas me aquece saber que o povo consegue reerguer o povo. Mais ninguém.
A casa da minha colega de trabalho ficava no bairro Mathias Velho, saiu de casa com o marido e os filhos só com as roupas que vestiam. Ela dizia que procurava o seu telhado pelos vídeos de drones que sobrevoaram o bairro, e não encontrava. O rio marrom a devorou e cuspiu, não se sabe onde. Ela comenta que sua bolsa, suas roupas e seus móveis devem jazer em algum lixão do nosso município, senão outro. “Devem”, porque nem isso tem certeza, e todos os dias ela lastima a mesma coisa: “eu realmente não tenho mais nada”.
Um mês se passou, mas ainda é maio.
Eu até fui na Mathias depois que a água baixou. Parecia que haviam jogado uma bomba lá. As ruas escuras, pilhas de destroços e carros abandonados, tudo era sujo e cruel. As árvores morreram onde a água bateu e o nível foi tão alto que algumas casas foram pintadas por inteiro.
Ajudei por um dia a limpar a casa de um amigo de lá. Eu, minha irmã e toda a família dele, passamos produtos, esfregamos e lavamos com um jato d’água. O cheiro era o de menos, mosquitos empesteados rondavam a minha cara enquanto eu empurrava o barro grosso para fora do terreno. A frente da casa dele tinha um cerco de madeiras mofadas, estofados molhados e outros já-não-mais móveis.
E as casas ao redor, aquelas que a enchente não devorou, também ficaram com suas cicatrizes de barro. Era mais fácil o jato d’água furar a parede do meu amigo do que tirar as manchas.
Alguns dias ele dormiu na casa do meu pai. Eu encontrava ele pela tarde, depois do meu serviço e brincava “Não tem casa, não?”. Pelo menos, o riso dele era sincero.
Quinta-feira, depois que tudo voltou a funcionar (ao que dizem), eu fui entregar os jornais do Timoneiro pelo centro de Canoas. Um protesto que aconteceu na frente da Câmara de Vereadores me barrou de um dos pontos do meu trajeto. Eu assisti as buzinas e o coro hostil fazerem a orquestra para os empurrões do povo que tentava entrar no prédio, contra os policiais. Ovos foram atirados nas janelas e paredes.
Lá do escritório, pelo menos, o som dos aviões era alto o bastante para abafar os dos rojões.
No dia seguinte, as paredes ainda estavam manchadas de claras de ovos, no prédio da Câmara e na Prefeitura. Mas as cascas eram juntadas pelos garis. Os policiais sorriam como se o dia anterior não tivesse existido. “Bom dia, do Timoneiro, né?”. “Bom dia, eu mesmo”, respondi.
Em junho, Canoas fará aniversário.
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