Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Diário da Enchente

Inspirado no Diário da Pandemia – uma pessoa por dia, um dia de cada vez, iniciativa de Julia Dantas – o Diário da Enchente reúne relatos sobre a maior tragédia climática do Rio Grande do Sul. Editado por Luís Felipe dos Santos (@lfds85) e Raphaela Flores (@rapha_donaflor). Foto: Isabelle Rieger.

A cidade já não era mais a deles, por Vanessa Silla

Hoje Seu Júlio não fez a cama, não esquentou o pão, não fechou a porta da casa ao sair. Na rua onde ele mora a água foi se aproximando aos poucos, mas na hora de invadir sua casa, parecia apressada, se apossando de tudo com uma rapidez assustadora.

Júlio foi daqueles que preferiu ficar em casa, acreditando que a água não alcançaria sua residência, haveria de passar esta chuva toda, três dias no máximo, daqui não saio, disse aos vizinhos que aos poucos começavam a tomar providências.

Passou seu último café no dia 10 de maio na pequena cozinha, cedo pela manhã, e foi dali que avistou a inundação se aproximando da esquina. E veio com uma cor densa, com impulso e com a ingenuidade de simplesmente seguir, contornando obstáculos, corpos e sonhos.

Cada centímetro de água o deixava mais apreensivo, o pavor foi mais rápido do que sua teimosia, mas a agilidade de sair de casa ainda parecia sob controle, então juntou algumas coisas importantes em uma sacola de lona e começou a subir. Subiu em cima do sofá, depois da mesa, aí considerou usar o telhado.

Estava sem luz, melhor seria esperar o amanhecer para subir ao telhado. A madrugada não foi materna, não acalmou seus nervos, avançou com enxurradas violentas, sentiu que a água iria persegui-lo incontrolavelmente. Tinha uma lanterna grande, o que o impediu de levar tombos mais graves.

Por volta das quatro da manhã, um porta-retratos passou por ele com muita deliberação, como se ele soubesse onde levar aquela lembrança, então foi a cadeira onde ele gostava de ler que se mexeu, e ao mesmo tempo que a bateria do celular acabou, um livro saiu em direção à porta. A escuridão lhe pertencia, ele tinha que economizar a lanterna, seus objetos foram abandonando-o aos poucos, como se tivessem pressa em abandoná-lo. Passou a noite em pânico e inoperante, mas tinha uma espécie de fé de que seria resgatado pela manhã, principalmente porque não conseguia sair dali, não sabia nadar.

A água amoleceu tudo ao redor, levou até a bolsa de lona que ele havia separado com algumas roupas e documentos. Seu Júlio já estava incrédulo, sem saber quanto tempo havia passado, estava com fome e com o queixo batendo, estava cheio de medo e incerteza.

Ele precisava sobreviver, aprenderia a rezar melhor, o neto não poderia vê-lo desaparecer, o menino ficaria arrasado. Foi de repente, no meio de devaneios, que ele ouviu uma voz ao longe.

“Tem alguém aí? Oiiiiiii”.

Ele ficou ainda mais tenso e parou de tremer. Ele ria nervoso e se mijava nas pernas, seria resgatado, mas sua vida preservada mês a mês, com pagamentos insistentes e diluídos no cartão de crédito estava como ele, descalça e flutuando.

João Ramirez não aguentava mais ouvir a esposa e as filhas falarem da tragédia, das enchentes, das malditas bóias que não funcionavam. Já não bastavam as sirenes, o som dos helicópteros, o ruído da chuva, o barulho das notícias na televisão? O que podia-se fazer para acabar com esse vaivém de roupas para doar, pix para ajudar os atingidos e trabalho voluntário? Todos os dias ele inventava uma desculpa incomum para não mexer no armário e separar as roupas que não queria mais. Queria todas. Ele não tinha vontade de se desfazer das coisas, não, não era egoísmo, era só que todo mundo estava doando, que diferença faria um par de sapatos a mais?

A cidade de Porto Alegre não era a cidade deles. Ele sentiu muita pena de ter inundado, da natureza ter se expandido, da água ter resolvido invadir as casas, os escritórios e da chuva de merda nunca ter parado de escorrer. Foda-se se os responsáveis negligenciaram a porra das medidas necessárias, que se dane esse rádio. Agora, ver sua família se envolver nessa situação de guerra todos os dias o deixava irritado. As redes sociais assumiram os apelos de adoção, com todos aqueles cachorros chorando de tristeza. A esposa dele está pressionando ele e exigindo todos os dias que ele doe seus sapatos tamanho 42, “estão pedindo Joãoooo ah e calça G também. Por favor, para os resgatados”, ela estava incomodando ele. Cara, que vigilante, mulher sabe ser insistente. “Deixa eu doar no final de semana, com calma”.

Uma semana – a primeira, e a chuva não parou. Na segunda o acúmulo de água aumentou e os rios se espalharam vigorosamente para outros lugares, na terceira bateu à sua porta. João Ramirez, João Ramirez, disse uma voz esvaziada de vida, sua casa está protegida, sua família está firme aqui, a água nunca chegará a esta linda casa de dois andares.

Nunca é uma palavra tão flexível como as cheias, assim que os diques do Mathias Velho romperam, a força da chuva juntou-se ao volume da água. Sem luz e exaustos pela precariedade da zona envolvente, todos saíram da casa, já com dois
metros e meio de altura no primeiro andar. Uma lancha os levou embora e eles foram colocados em um abrigo temporário.

Chegaram a Porto Alegre depois de quatro horas encharcados de chuva e exaustos de frio. “Que diabos é esse abrigo?” “Não é um abrigo, é um estádio”, disse uma delas, “até entregamos algumas coisas aqui, fizemos trabalho voluntário semana passada”. “Vou ter que dormir aqui nesse monte de entulho de gente? Vamos para um hotel agora!” Não tinha hotel, não tinha parentes para acolher, “vamos dormir na fábrica então”, gritou.

A ideia era perigosa, a fábrica não deveria estar totalmente submersa, talvez com problemas elétricos, “mas aqui não dormimos”, ele empinou o nariz no ar, lançando insultos.

João Ramirez finalmente sentou-se num canto, na beira do colchão, como se estivesse enojado de usar o resto, ou com medo de que se sentasse mais para dentro seria obrigado a ficar. Ele notou que o chão estava desgastado e com manchas. “Tua cama de solteiro, só por esta noite”, disse a filha mais nova, “olha pai, está tudo arrumadinho!” Ficou ali, em silêncio, durante horas, emburrado, pensando em como chegar até a fábrica. Ele não aceitou a sopa, não foi ao banheiro, não quis trocar de roupa.

Ele só abriu a boca quando viu um homem de 53 anos se arrastando, o homem parecia em transe, ele entendia este jeito, esse andar apático, quase conseguia tocar os passos do sofrimento. Eles tinham algo em comum, a impotência os unia. Mas assim que ele olhou para cima, ele gritou. Nunca tinha visto ninguém caminhar com seus sapatos Oxford de couro marrom de fabricação italiana com tanta displicência.

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