Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Diário da Enchente

Inspirado no Diário da Pandemia – uma pessoa por dia, um dia de cada vez, iniciativa de Julia Dantas – o Diário da Enchente reúne relatos sobre a maior tragédia climática do Rio Grande do Sul. Editado por Luís Felipe dos Santos (@lfds85) e Raphaela Flores (@rapha_donaflor). Foto: Isabelle Rieger.

Daqui ninguém sai ileso, por Morgana Mazzon

Digo que sou uma contadora de histórias, conto histórias através de imagens também, mas há muitos anos não me arrisco a escrever. Há alguns meses, me peguei angustiada, pois me percebi esquecendo partes da minha história de vida, a única coisa que acredito possuir de verdade e que ninguém pode me tirar, (o que se reforça ainda mais nesse momento de vulnerabilidade, ao testemunhar tanta perda material). E isso me deu uma sensação bastante desconfortável de perda de controle. Escrever talvez seja uma boa estratégia, pensei; e segui a vida sem colocar meu plano em prática, até o dia de hoje. 

Daqui ninguém sai ileso

As frases surgem na cabeça de forma caótica e desordenada. Parágrafos desconexos. Assim como as emoções que me atravessam ao longo desses 46 dias. Acredito que não poderia ser diferente, visto que não é possível dar coerência ou ordem à tragédia.

 

Seis de Maio de 2024. 

Há quatro dias coloquei a cama junto à janela, e vinha acordando diversas vezes durante a noite para checar se a calçada da minha rua ainda estava seca. Ansiedade cumprindo sua função, me protegendo de uma situação de ameaça, ou eu estava exagerando, enlouquecendo? 

Fazia cálculos mentais sem base científica alguma e questionava as pessoas que considero mais sensatas: “será que tem como a água chegar aqui em casa?”. “Simplesmente não tem como”, me disseram todas elas. A verdade é que me fazia essa pergunta desde novembro de 2023, quando alagou a av. Praia de Belas. A Barão sempre alaga, são dois quarteirões até ali. Mas eu só devia estar exagerando mesmo. 

Naquela manhã de segunda-feira me sentia privilegiada, havia água em todas as extremidades do meu bairro, mas o quarteirão onde moro estava seco, e eu tinha um pouco de esperança de que não precisaria sair de casa, assim poderia continuar dedicando meu tempo livre para o voluntariado nos abrigos, sem ter que pensar muito na minha própria segurança. 

Iniciei um atendimento online às 11h30 da manhã (sou psicóloga clinica), e às 12h10 ouvi barulho de pessoas caminhando na água e uma gritaria na minha rua. Em quarenta minutos a água já cobria as rodas dos carros, as bombas do Menino Deus haviam sido desligadas.

O dia estava ensolarado, e aquela água parecia tão calma e “parada”, o que para mim era ainda mais assustador, como uma cena de filme. Naquele momento me veio à mente o relato de um rapaz que acolhi em um abrigo no dia anterior: “A água subiu muito rápido, e chegou ao segundo andar da nossa casa. Eu e minha família fomos para uma casa no condomínio ao lado, fica num ponto mais alto da rua, a água chegou lá também. Precisamos ser resgatados, eu, minha esposa e meus filhos pequenos.” Já em pânico, peguei minha gata, HDs com meus registros de trabalho, fotos de família… As únicas coisas que acredito possuir de verdade (minha história) e saí de casa.

 

O privilégio, a gratidão e a culpa.

Sim, eu sou uma pessoa extremamente privilegiada, fui muito bem acolhida na casa de amigos por 13 dias; eu, minha mãe, minha gata (essa parece que quis sugar para si todo meu pavor), e nosso turbilhão de emoções.

Nos primeiros dias me percebi quebrada por dentro, caminhando na rua como um boneco, de forma automática, comprando comida de cachorro por engano, ao invés de comprar comida pra gato e coisas do tipo. Sim, eu sei, a ansiedade provocada por uma situação de ameaça pode te deixar por dias desorientado, e isso é natural. Esse foi o discurso que passei a reproduzir com muita frequência durante os atendimentos com meus pacientes nos dias seguintes, ou nos acolhimentos que fazia em abrigos. 

Sim, eu sou uma pessoa extremamente privilegiada. A água na minha rua atingiu 1.80 de altura, por um metro, mais ou menos, não entrou no meu apartamento, que fica no segundo andar do prédio. Foi por pouco, eu não estava louca em pegar as fotos; porém tive sorte e a água não entrou. Me sinto grata!

Mas a verdade é que daqui ninguém sai ileso. Quem não foi diretamente afetado pelas águas da enchente, teve que sair de casa, ou ficou sem água na torneira, ou sem luz, sem conseguir comprar água no mercado, a maioria sem conseguir trabalhar, ou tiveram suas casas “invadidas” por amigos e familiares desabrigados. Como li num texto da Mãe Júlia de Obá, de uma forma muito simbólica a propriedade privada deixou de existir por aqui.

Da mesma forma, é impossível ficar imune à dor do outro, não para quem tem coração e empatia. Estou quebrada não pela “aventura” que eu e minha gata vivemos, estou quebrada por nossa comunidade. O trauma e a dor são coletivos. Foram dias acompanhando histórias extremamente tristes em abrigos, pessoas que não queriam ter saído de casa por medo de saques, pessoas que perderam tudo, mas estavam lá trabalhando como voluntários, ajudando outras pessoas na mesma situação.

Pedidos de resgate feitos por amigos pelo Instagram, conhecidos desaparecidos, casas de amigos ou de seus familiares inundadas, notícias de saques e assaltos nos apartamentos na minha rua, na região central da cidade, pacientes sendo resgatados de barco com suas famílias, vizinhos que perderam tudo. Além disso, ao voltar pra casa e ver as ruas do bairro em que nasci cheia de entulhos, memórias e sonhos misturados com a lama e o lixo, dói demais. 

“Quebrada” não é uma definição única para mim nesses 46 dias, confesso. Talvez a mais adequada seja “mista”: morta, viva, revoltada, exausta, inspirada, apática, motivada, amedrontada, “sangue no olho”, desiludida, esperançosa, ansiosa, culpada e grata. É incrível como o ser humano pode sentir tanta coisa ao mesmo tempo, tanta emoção contraditória. 

Tenho me sentido muito desafiada nesse processo, afinal meu leme na vida é a disposição para acolher e aceitar emoções difíceis – pois todas elas têm uma função – bem como o comprometimento com meus valores. Mas confesso, tem sido difícil aceitar a própria humanidade, difícil aceitar a culpa quando se vê incapaz de resolver as coisas, a culpa por se sentir privilegiada e ter uma cama quente e seca para dormir, quando tantos estão aguardando resgate dentro d’água; é difícil aceitar que senti inveja de quem estava fazendo resgates, pois pra mim parecia ser a única coisa que de fato fazia sentido, salvar vidas; inveja de quem parecia não cansar nunca, ajudando e ajudando. 

Eu cansei demais, cheguei a dormir mais de 15h em um dia e acordei me sentindo culpada. Apesar disso tudo, é estranho como estive inteiramente no presente todos esses dias, nenhuma fuga mental da minha rotina medíocre ou do meu senso de insignificância foi necessária. Paradoxalmente, na mesma medida que a vida parecia ter perdido, ela também ganhou mais sentido e propósito.  

 

O sentido da vida é a própria vida

É, na mesma medida que me senti “quebrada” por dentro, nunca me senti tão viva. Eu me senti viva durante os acolhimentos que fiz como psicóloga voluntária nos abrigos, eu me senti viva acolhendo e atendendo meus pacientes. Eu me senti viva no contato com pessoas incríveis que conheci no meio dessa luta, pessoas que compartilhavam comigo os valores de solidariedade e humanidade. 

Eu me senti viva sendo acolhida por estranhos no meio da rua, quando estava desorientada, com mochila, mala e gata. Eu me senti viva recebendo ajuda de amigos, me senti viva lendo mensagens de preocupação e carinho que recebi de amigos próximos e de amigos distantes, de pacientes que atendo hoje, e de pacientes antigos, me senti viva nos reencontros inesperados e surpreendentes que a vida me proporcionou nesses 46 dias.

 Eu me senti viva fazendo um piquenique no cordão da calçada em uma tarde de domingo nublado, com uma adolescente de 13 anos que conheci em um abrigo. Me senti viva nas nossas coversas intermináveis sobre qualquer coisa, ou no conforto do silêncio compartilhado. E eu, que nunca quis ter filho, no meio desse caos, senti vontade genuína de adotá-la. A enchente realmente me afetou, me mudou, disseram meus amigos. 

Eu me senti viva em poder abraçar uma vizinha que nunca tinha visto na vida e poder ajudá-la a encontrar algumas coisas que poderiam ser resgatadas em meio aqueles entulhos, e ali nasceu uma amizade. Amizade que talvez nunca tivesse surgido se não fosse por causa da enchente. Eu me senti viva lavando nossas calçadas. 

Ainda teria muito para falar, como por exemplo, sobre o reencontro insólito que tive com o prazer em fotografar, o qual estava adormecido desde a pandemia. Registrar imagens da enchente me gerou muito conflito: dor, mas também prazer e vitalidade ao perceber a fotografia cumprindo seu propósito, contando história, fazendo denúncia e gerando reflexão, reflexão que gera mudança. 

Enfim, escrevo esse texto enquanto a chuva cai lá fora. Esse barulho que sempre me trouxe paz e conforto, hoje me deixa aflita, ansiosa e em conflito, pois ainda acesso a sensação de paz e conforto e logo me sinto culpada por isso. 

Morgana Mazzon

 

E foi na fotografia que encontrei uma forma de ajudar alguns amigos, lancei uma campanha de venda de imagens de Porto Alegre, registros feitos por mim ao longo dos meus 12 anos de carreira como fotógrafa. Todo valor arrecadado para além dos custos de impressão será destinado a pessoas que tiveram suas casas diretamente afetadas pelas águas da enchente. Quem tiver interesse em colaborar adquirindo essas imagens pode me contatar pelo Instagram: @morganamazzon

3 respostas para “Daqui ninguém sai ileso, por Morgana Mazzon”

  1. Avatar de Roberta
    Roberta

    Que texto maravilhoso, verdadeiro, escrito lá do fundo das entranhas… Parabéns! Que consigas vender muitas fotos !!!

  2. Avatar de Lilian
    Lilian

    Tão inteira e tão sensível. Que texto lindo!

  3. Avatar de Evelise Luz
    Evelise Luz

    Incrível esse narrativa toda! Vida cotidiana que se transformou em meio ao caos, mas tbm fez emergir o senso de comunidade entre tantos desconhecidos. Que belíssimo texto!

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