Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Diário da Enchente

Inspirado no Diário da Pandemia – uma pessoa por dia, um dia de cada vez, iniciativa de Julia Dantas – o Diário da Enchente reúne relatos sobre a maior tragédia climática do Rio Grande do Sul. Editado por Luís Felipe dos Santos (@lfds85) e Raphaela Flores (@rapha_donaflor). Foto: Isabelle Rieger.

Eu não sei qual é o melhor dia para começar esse diário, por Suzana Pohia

Hoje é uma quinta-feira, 6 de junho de 2024. Centro Histórico de Porto Alegre. 22h35min.

Setembro de 2023

Não lembro o dia, era uma noite também, encerrei meu expediente entre 20h e 21h. E naquele modo automático, piorado após a pandemia, entrei nas redes sociais para ver o que o mundo dizia.

E era chuva. Muita chuva.

Em cidades que nunca fui. Conheço apenas de nome e uma delas uma colega de trabalho da mãe viveu alguns meses, cerca de uma década ou mais atrás. “Roca Sales é linda. O centro todo bonitinho e organizado.”

As imagens mostravam um volume de água no centro de Muçum e Roca Sales incrivelmente alto, cobrindo térreos e invadindo ruas centrais. Segui rolando a tela em busca de mais notícias. Nada. Fui para os portais dos grandes jornais gaúchos. Nada. Rádios localizadas em Porto Alegre. Nada. Segui a minha busca. Precisava de informação, pois aquilo ali não era normal. Não poderia ser normal. E parecia certo que a água levaria vidas.

Encontrei o Grupo Independente, de Lajeado, e a transmissão estava ao vivo. Sozinha. Ou melhor, acompanhada da gata da minha amiga, passei a madrugada ali. Escutando sobre bairros que nunca fizeram parte da minha vida. Alguns relatos traziam: “Aqui alaga sempre”, mesclados com “20 anos que vivo aqui e é a primeira vez que a água chegou”. Também eram lidos pedidos desesperados de resgate.

Nunca me banhei nas águas do Rio Taquari, mas nesse dia aprendi que sua cota histórica foi 29 metros nesse tão próximo setembro de 2023.

Uns dois, três dias depois, essa água toda chegou no meu Guaíba. O rio que não cabe em um rótulo de lago.

Entremeio

Já defendi a derrubada do muro da Mauá. Admito. Compreendi a importância de sua manutenção há cerca de 10 anos atrás, quando participei de movimentos como o Defesa Pública do Cais, Ocupa Cais Mauá, Cais de Todos. E muito por escutar a Anne Biehl, dividimos apartamento na época em que ela estudava Engenharia Hídrica no IPH/UFRGS.

Atualmente, Anne é engenheira hídrica (maravilhosa! <3) e o muro cada vez comprova o porquê é importante.

Teve só uma coisa que não mudou: ainda confundo compota e comporta. Nunca sei o que é doce ou o que é contenção.

Abril de 2024

Digo que não tenho religião e sou aquela ateia que dá uma lida no horóscopo antes de sair de casa. Além disso, acredito nos poderes do Instituto Cacique Cobra Coral. É meio como aquele ditado: “No creo en brujas, pero que las hay, las hay”. Seja quando acompanhava de longe alguma notícia sobre ou quando passei o carnaval no Rio de Janeiro .Além da previsão, choveu muito nos dias que antecederam o carnaval, no entanto, no carnaval sol, Sapucaí e blocos. Depois disso, sempre peço uma benção para Cacique Cobra Coral garantir dias de não chuva de vez em quando. Como a sexta-feira, 26 de abril, e também  o domingo, 28 de abril. Dias de Honk Poa e que conseguiria participar da programação. O sábado foi de muita chuva. Trabalhei como todos os meus sábados nos últimos anos. E consegui ir ao cinema, ali na Cinemateca Paulo Amorim, assistir “Dias Perfeitos”.

Já sabia da previsão de Metsul para um grande volume de chuva em muitas regiões do Rio Grande do Sul. Até, por isso, acionei Cacique Cobra Coral para garantir, pelo menos, parte da programação do Honk Poa.

 

Não lembro o volume de chuva da segunda.

Terça, 30 de abril, chuva e véspera de feriado. Jantei sopa de feijão com vinho na casa de Antônio. Era um vinho que o pai dele ganhou em janeiro em seu aniversário de 90 anos, daqueles que nem sempre os proletários podem comprar. Brindamos o feriado dos trabalhadores e trabalhadoras.

A sobremesa foram as notícias sobre chuva e estragos. Já procurei a Rádio Independente para saber sobre o Vale do Taquari. E não lembro se foi aí que já vi ponte sendo levada ou se foi no outro dia.

A partir deste dia, submergi.

Fui uma massa disforme que acompanhava níveis de rios, rodovias desmoronando, pedidos de socorro e cenas de destruição. Um estado de alerta. Não tinha sono, não tinha fome. De certa maneira, parecia que eu não podia sentir.

Se o concreto virou papel, o que vai restar de nós?

Ribanceiras inteiras sumindo. O que vai restar de nós?

Caí, Jacuí, Taquari e Sinos com cotas históricas. O único que ainda estava em um nível “não-histórico” era o Gravataí.

Uns dois, três dias depois, essa água toda chegou no meu Guaíba. O rio que não cabe em um rótulo de lago.

Maio de 2024

Metsul e IPH falavam sobre a previsão do Guaíba subir 5 metros.

2 de maio

As ilhas começaram a alagar rapidamente. Combinei com Antônio que iria para casa, trabalhar e acompanhar as notícias do dia. Já com ideia de ir para casa dele depois para não correr o risco de ficar ilhada.

No nosso trajeto da manhã, escutamos sobre um abrigo provisório da prefeitura para o pessoal das Ilhas no Pepsi On Stage. Olhei para Antônio e disse:

“Um dia choveu e fui em um show lá. Tava bem alagado e embarrado na frente. Não me parece uma escolha inteligente para abrigar pessoas que estão sofrendo com a enchente.”

Um dia depois esse abrigo foi evacuado.

A vida no Centro Histórico corria normalmente. No mercadinho, a dona e funcionário conversavam sobre a previsão da cheia.

“Será que vai subir até aqui?”

“Capaz, imagina!”.

Pensei em responder: “Olha, quem sabe cogitem isso, sabe?! É muita água que tá vindo”. Calei como quem teme o gosto de alimentar suas próprias ansiedades e paranoias.

Em casa, acompanhei o nível do Guaíba. Pela manhã, o sistema de proteção de enchente havia entrado em operação. O lado ruim, que isso, também poderia aumentar o volume de água nas Ilhas e em Eldorado.

Decidi que seria melhor sair de casa nessa noite. É um lugar alto, entretanto meu temor era ficar ilhada sozinha. Além disso, tenho fobia de ratos.

Mas antes, cheguei em um meio-termo que me pareceu razoável. Vou, mas não vou de mala e carregando tudo o que tinha mapeado. Afinal, “Terça, no máximo, já devo estar em casa.”

Quando saí de casa, os bares da Rua da Praia estavam abertos, ainda não havia água no centro da cidade. Subi no carro e falei:

“Gracias, Antônio! Espero ser só neurose, mas não quero pagar para ver se o muro vai segurar toda essa água. Confio no sistema, mas além do volume, não sei até quanto tempo ele suporta toda essa água”.

Pelo Twitter, acompanhei o repórter do Correio do Povo e um fotógrafo mostrando como a água ultrapassava a contenção e vazava pela Mauá.

“Era para ter uma equipe acompanhando isso! Sei que as pessoas precisam descansar, mas tá prevista a maior cheia. O volume de água é muito alto!”.

3 de maio
6h30min.

O centro já dançava ao som das águas.

Acordei pensando na Reserva Técnica do Margs. Primeiro museu em que fiz morada profissional. Fui repassando ruas, instituições, comércio, bares e restaurantes queridos. Enviei mensagem no grupo de Whatsapp do prédio avisando que a água subia forte e sem controle.

Bem pertinho, a casa de bombas colapsava

Escutei que o Posto de Saúde localizado no Centro iria funcionar somente até o início da parte da tarde.

“Loucura, deveriam evacuar já. Na verdade, por redução de danos e gestão de risco, prefeitura já deveria ter tomado uma série de medidas desde ontem, pelo menos.”

Um pouco antes das 11h avisam na rádio que o Posto de Saúde Santa Marta já estava sem atendimento.

4 de maio

Acordei e a primeira coisa que vi foi o pedido de resgate de uma amiga para sua família. Logo depois, outra amiga que mora em outro estado, apavorada atrás de seu irmão em Canoas.

O dia todo assim.

Fiz o que eu pude, dentro das minhas condições naquele momento, organizar informações e buscar contatos. Com alívio, escutei um tempo depois, que a moça grávida em trabalho de parto de Eldorado, chegou de helicóptero no Hospital em Canoas.

Milhares e milhares de pessoas. Molhadas à espera de resgate. Uns com medo de perder a casa, os poucos móveis que poderiam ser salvos.

Na noite de sábado, lembro do prefeito Melo falando que o Dique da Fiergs/Sarandi não corria risco de rompimento. Para as pessoas ficarem tranquilas.

Entremeio

Cerca das 4 da manhã tentava convencer minha cabeça que a gente precisava dormir. Tinham sido muitas horas acordadas. Uns minutos depois a chuva voltou a cair muito forte.

Meus olhos também choveram.

5 de maio

Lutando contra a insônia e ansiedade, consegui passar das 5 horas de sono. Acordo com uma xícara de café e Antônio falando:

“Parece que o Dique do Sarandi rompeu.”

Respondi com palavras que prefiro autocensurar e traduzir dessa maneira:

“Como assim? Ontem, na coletiva, o Melo afirmou que não tinha essa possibilidade.”

Assim, como Humaitá, Vila Farrapos. Outro dia de pedidos desesperados de resgate. Já com inúmeros pontos de abrigos e organização de voluntariado.

O verbo do momento foi extravasar.

6 de maio

Alagou Cidade Baixa, Menino Deus, Ilhota…

Das 23 casas de bombas, apenas 2 estavam funcionando. Sendo que algumas foram desligadas e somente horas depois a população foi avisada.

Mais um dia de caos.

Melo falou para evacuarem. Depois disse que o pânico foi a toa.

Entremeio

A única vez que entrei no Grêmio Náutico União – sede Moinhos de Vento foi em uma audiência pública que tratava da questão da privatização do Cais. Estranhamos ser lá e não em local central perto do Cais. Não lembro bem o ano. Foi ainda o consórcio antes desse atual consórcio e projeto.

Segunda semana de maio

Comecei como voluntária em um abrigo no Grêmio Náutico União – sede Moinhos de Vento. Era do grupo da recreação. Uma iniciativa que surgiu para que as crianças pudessem ser crianças.

Mundo onírico

Comecei a sonhar com água, enchente, resgates.

Terceiro final de semana de maio

Entrei em contato com o cheiro da enchente ao participar do mutirão de limpeza da casa de uma amiga. Foi também quando a água baixou na minha rua e consegui acessar minha casa, que fica no alto. A recepção no hall do prédio tinha mais de uma dezena de cadáveres de baratas. “Pelo menos estão mortas”, pensei.

Joguei as comidas fora.

O cheiro da geladeira fez que eu esquecesse de pegar casaco.

Quarto final de semana de maio

Uma amiga que atuou na frente de resgate de bichinhos foi viajar. Lá em setembro estava na casa dela. Inclusive, no temporal de janeiro também passei lá. Agora, além da gata, havia um gatinho resgatado que ela adotou e uma gatinha grávida como lar temporário. Filhotes nasceram na quinta, sexta já eram minha responsabilidade. Dois: o branquinho e o malhadinho.

Pareciam bem e saudáveis, nessa semana de junho morreram. Mais um luto no meio de tantos.

Entremeio

Nasci no pampa gaúcho. Interior, eu dizia. Assim, como digo que Porto Alegre é meu primeiro amor geográfico.

Uma amiga de outro estado perguntou algo como estão as coisas por aí.

Além de triste e dolorido, comentei sobre a BR290.

É ela que me leva para o colo de mãe.

Através dela sai em busca de sonhos.

Desencanei, alcancei, vivi utopias.

Compreendi que são interiores, o que significam e o respeito que merecem.

O buraco dela também é meu.

Junho de 2024

Mundo onírico

Ainda sonho com água, resgates, enchente e lama.

07 de junho. 00h51min.

É a primeira noite que vou dormir em casa depois da enchente.

É um dos meus muitos privilégios.

Agora, acredito que consigo elaborar de uma maneira um pouco mais concreta o que foi essa massa disforme que fui.

Nesse momento, há casas ainda alagadas, pessoas preocupadas se terão emprego, crianças com saudades de seu brinquedo favorito, memórias perdidas que não são recuperáveis.

Eu não sei qual é o melhor dia para terminar esse diário.

Uma resposta para “Eu não sei qual é o melhor dia para começar esse diário, por Suzana Pohia”

  1. Avatar de Manoela
    Manoela

    Intenso e sensível. Traduz com riqueza nossa nau desgovernada.

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