Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Diário da Enchente

Inspirado no Diário da Pandemia – uma pessoa por dia, um dia de cada vez, iniciativa de Julia Dantas – o Diário da Enchente reúne relatos sobre a maior tragédia climática do Rio Grande do Sul. Editado por Luís Felipe dos Santos (@lfds85) e Raphaela Flores (@rapha_donaflor). Foto: Isabelle Rieger.

Crônica de uma enchente: um mês encharcado, por Marília Ramos

No primeiro final de semana das enchentes, as vizinhas no grupo do condomínio começaram a enviar mensagens perguntando o que iríamos fazer. No meio das mensagens delas, chegavam outras de colegas da Ufrgs, dizendo que abrigos estavam sendo organizados em vários pontos da cidade. Em menos de 2h no sábado de manhã,  dia 4 de maio de 2024, a Escola de Educação Física e Dança da Ufrgs, a Esefid, já recebia 200 pessoas desabrigadas, os colegas do grupo de professores do Ifch diziam que a a 3ª perimetral já estava engarrafada de tanta gente indo para o abrigo da Esefid. Aqui no condomínio as vizinhas já tinham ido para o salão de festas.. eu queria ir para a Esefid, mas não fui quando soube do engarrafamento, já havia mais de 400 pessoas abrigadas, carros lotados de doações engarrafavam as ruas e eu decidi ir para o salão de festas do condomínio, onde montanhas de pães de sanduíche e frios inundavam a mesa enorme.

As vizinhas agitadas passavam manteiga nas fatias de pão em uma organização quase fordista, montavam a linha de produção de sanduíches para doações. Uma vizinha super ativa juntava os pix que chegavam sem parar, outra chorava pela comoção com quem perdeu tudo.. E eu, fiz pix,  fui e comecei na linha de produção… passava manteiga,  colocava os frios e me  tornava parte daquela engrenagem solidária… Íamos no fluxo… Dias e dias… Maio andando e a chuva não dava trégua.

O salão de festas do meu condomínio começou a virar um QG solidário… Com muitas doações. A equipe, então, decidiu fazer marmitas. Uma das solidárias vizinhas assumiu o fogão e, com outras auxiliares não menos engajadas, começaram a produzir comida. A escolha do cardápio envolvia um debate caloroso e afetuoso. Aos guris, foi delegada a churrasqueira, para fazerem galeto no espeto. As crianças faziam desenhos nas tampas das marmitas com mensagens afetuosas aos desabrigadas e voluntários que comeriam a comida nas marmitas.

Armários foram levados ao salão para organização das roupas. Uma jovem voluntária fez um link online para registrar os pedidos. Já estávamos quase no fim de maio, precisávamos devolver o salão para a administração. Mas a vontade de ajudar continuava. Marmitas foram interrompidas.  Agora os hot dogs, noutro espaço do condomínio, passaram a ser produzidos. As roupas para doações tomaram as poltronas da antiga sala de cinema do condomínio e o trabalho voluntário ainda continua, pelo jeito irá junho a dentro, pois sempre tem gente precisando e outras querendo ajudar.

De minha parte não pude continuar ajudando tanto porque demandas por dados estatísticos e diagnóstico sobre os abrigos surgiram. Horas e horas na frente do computador,  atividades com um bando de alunos nerds experts em mapas,  cursos de rios, inteligência artificial e linguagem de programação. Entre marmitas e dados ficava cada dia mais ansiosa. As chuvas não davam trégua, o número de desabrigados continuava a aumentar. Pingos de chuva não geravam mais tranquilidade.

A tragédia era tanta  que até o jornalista William Bonner veio para o RS apresentar o Jornal Nacional.  Minha melhor amiga perdeu tudo na enchente. Alguns alunos perderam tudo… Um amigo no Vale do Rio Pardo perdeu tudo. Os pais de um amigo em Canoas perderam tudo. A faxineira não vem limpar porque está ilhada. O estádio do meu time e do rival estavam alagados… Não havia água potável. O aeroporto e a estátua do Laçador pareciam ilhas longínquas. Um barco navegava em  frente a casa de Cultura Mario Quintana, enquanto um jetski apressado rasgava o aguaçal na Av. Farrapos. Tinha gente salvando cavalo no telhado e até no 3º andar de um prédio, parecia um pesadelo. E eu acordava no meio da noite, queria ajudar as pessoas mas não me sentia capaz… Marmitas e scripts de análises de dados se confundiam na minha mente. Chorava, choro e continuo seguindo. Não posso perder a força.

Sou uma gaúcha alagada nas lágrimas ao ver meus conterrâneos alagados nas águas enlamaçadas dos rios. Mas não está morto quem luta e quem peleia. Já estamos em junho e ainda há muito para reconstruir. Sigamos!

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