O canto da parede ganhou uma mancha cinza em volta do amontoado de cabos que descem do ar condicionado para o buraco que os liga com o trambolho do lado de fora do velho sobrado. A casa reclama das feiuras que invento e que interferem em suas janelas vermelhas quase centenárias. Não a julgo.
A mancha se espalhou à medida que a chuva lá fora se tornava inclemente. Desisti de dormir. Aquele barulho angustiante da água caindo e escorrendo grossa nas paredes velhas, o cheio de mofo, o ar denso, irrespirável. Me compadeci de seu sofrimento e das inúteis tentativas de se manter refúgio. Logo ela, companheira de dias de verão, de noites solitárias, de danças desvairadas, de ventos e folhas no quintal, que esteve ao meu lado desde as primeiras horas do dia sem fim da pandemia de 2020. Logo ela, vizinha da única araucária da rua, atenta aos sinos da velha igreja, resiliente à trepidação e ao barulho ensurdecedor dos ônibus que rasgam a rua.
Nos anos felizes de sua infância, na década de 1940, gozava de uma vida bucólica no bairro. Do outro lado da rua havia uma imensa casa com jardim, ladeada por outra e mais outra dobrando a esquina. O bonde fazia certo barulho em sua passagem, imediatamente amenizado pela passarinhada ou pelo afiador de faca e seu realejo alvoroçando as crianças. Hoje está rodeada por prédios feios pintados de verde desmaiado, sem quintais ou mesmo uma folhagem pra chamar de sua. Na rua de fluxo constante os pássaros cantam de madrugada, pois sabem que só assim poderão ser ouvidos pelos iguais. Não admira que tenhamos cheias nos rios, enxurradas, ventanias. Uma cidade feita de torres de cimento rodeada de asfalto por todos os lados não pode esperar outro futuro.
Assistimos perplexas a inundação se avizinhando, destruindo tudo pela frente. Ouvimos histórias de morte e dor. Quando os dias clareavam e a chuva dava trégua, eu corria para onde a enchente havia chegado e observava incrédula o movimento das águas nas ruas tomadas. Tudo em volta tem as marcas de onde a água barrenta e suja chegou, carregando móveis, fotografias, brinquedos, cortes de carne das geladeiras, maquinário de fábricas, colchões. Pessoas andando sem rumo, em choque, catando seus pedaços levados pela força das águas. Nos recolhemos na companhia uma da outra. Mais uma vez perco a profissão, o norte, o dinheiro do fim do mês. Ela a beleza, os pedaços, a cor. De noite sonhamos com os dias amenos, com o bairro de outrora, com a cidade ainda um porto alegre. Nossos sonhos dentro de uma garrafa hermeticamente fechada levados pela correnteza da Praia de Belas.
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