Nos últimos dias, tenho procurado sair para ver Porto Alegre. Alguém que me observasse à distância talvez achasse que estou praticando um turismo da desgraça, satisfazendo meu apetite mórbido com imagens da dor e destruição alheias. Não é isso, asseguro. Na verdade, o que eu quero é ver como a cidade está – e, se possível, ouvir o que ela tem a dizer sobre si mesma. Porque Porto Alegre é uma cidade que fala, podem acreditar. O que eu e Porto Alegre já conversamos não é pouca coisa.
O Guaíba não chegou até mim. Em alguns momentos, temi que acabasse chegando: minha atual residência, no bairro Camaquã, está no térreo de um condomínio, dentro da área de alagamento pintada pelos mapas mais alarmistas dos dias de pavor. Quando a Icaraí começou a encher seriamente d’água, umas três ou quatro quadras abaixo, eu e minha irmã chegamos a elaborar planos de como tirar minha mãe (que está com dificuldades de locomoção) de casa, caso o rio continuasse reconquistando o que, no fundo, sempre foi seu. Mas a fome do Guaíba não chegou tão longe: fora um pequeno alagamento na rua de trás (que, segundo os moradores mais antigos, é coisa comum quando as chuvas são excessivamente fortes), tudo ficou bem. Não cheguei a ficar sem energia elétrica em momento algum, e as interrupções no abastecimento de água foram breves e intermitentes. Sou o que talvez se possa dizer um privilegiado da enchente: não me somei às vítimas, coube a mim o papel de testemunha.
Ando pela cidade desde então, sempre que consigo. Tentando testemunhar. E entender o que Porto Alegre está tentando dizer.
Vi algumas pessoas dizendo que Porto Alegre está ferida. Discordo – ou, na verdade, não discordo coisa nenhuma: de fato, Porto Alegre é uma cidade machucada. Só que isso não vem de hoje. Há tempos a cidade vem sendo maltratada, explorada, tratada por aqueles que detêm poder sobre ela como lenha para queimar. As feridas abertas pelo evento climático são novas, verdade, mas Porto Alegre já anda meio acostumada a sentir dores.
Não: o novo sentimento que percebo é de humilhação.
Porto Alegre – a capital que eu conheci, que aprendi a amar e reconhecer como meu lugar no mundo desde a pré-adolescência, lá na virada dos anos 1990 – era uma moça vaidosa, que gostava de gente, de barulho e movimento. Que gostava de estar na rua. Que gostava de ser bonita, e gostava que dissessem que ela era e estava bonita. Com o tempo, os que odeiam ou desprezam Porto Alegre foram enchendo as ruas de medo, as mentes de preconceito, as noites de vazio, as esquinas de obras nas quais ninguém vai morar. Ela foi deixando de lado a vaidade, foi ficando rabugenta e carrancuda, esquecida da própria beleza. E olha, vou dizer que nos últimos tempos vinha até se recuperando um pouquinho, sabe? Nos detalhes. Parecia que, devagarinho, Porto Alegre relembrava seus tempos mais felizes, aos poucos se animando a usar cores mais chamativas, a sorrir mais abertamente a desconhecidos e velhos amigos.
Até que veio o rio e sujou tudo de lama. E ele não veio porque é mau, porque odeia a cidade ou deseja que ela desapareça. Nada disso: ele veio porque é rio, e rios vêm de vez em quando. Embora haja sabedoria em seu ir e vir, o rio não veio nos trazer mensagem escondida alguma: ele só veio, e isso é tudo. Não foi o rio quem humilhou Porto Alegre, nada disso.
Foi a lama, a cidade me diz. As idas e vindas da água absurda em nossas ruas e casas, os arroios e riachos inesperados que ficaram lá muito além do que precisavam estar. Foi ver as pessoas com medo, fugindo de casa sem conseguir salvar quase nada porque ninguém avisou, ninguém se preocupou em evitar. Foi ver a vida das pessoas transformada em entulho, e o entulho transformado em lixo flutuante porque mandaram botar na rua e ninguém foi recolher. E a lama cobrindo tudo, e ficando lá durante dias e dias, infecta e fedorenta. Como se fosse uma coisa qualquer, como se ninguém tivesse responsabilidade de nada. Como se nem importante fosse.
O desamor, percebem? Ligaram o foda-se para Porto Alegre. A cidade ficou lá, coberta de lama, derrotada e imunda, e viu que as pessoas que deveriam correr em seu socorro apenas ficaram lá, olhando, dizendo que não tinham culpa, que não tinham nada a ver com isso. E Porto Alegre ficou triste. Mais: sentiu-se humilhada. Porque não era mais apenas abandono ou oportunismo ganancioso de quem fala de amor sem saber o que isso significa – agora, já era puro esculacho. O mundo todo olhou para Porto Alegre e viu não uma cidade orgulhosa de si, agradável e cheia de movimento, com cultura e discussão política nos bares, com ônibus indo e vindo e ruas agradáveis para caminhar: o que viram foi uma cidade desajeitada de concreto feio, coberta de lama, incapaz de se erguer da sarjeta, a quem ninguém fazia sequer menção de estender a mão.
Continua sentindo-se humilhada, Porto Alegre. E o que eu tenho tentado dizer a ela é que ela não está errada em sentir-se assim. Mas que agora, depois de consumada a humilhação, ela deve buscar consolo naqueles que a amam – pessoas que estão limpando suas casas, lavando suas fachadas, enchendo o peito de coragem e tentando recomeçar. Que a lama e os entulhos vão embora em algum momento. Que, aos poucos, ela pode sim reaprender a sorrir, ao lado daqueles que anseiam em sorrir junto com ela.
Sem esquecer o ódio, é claro. Porque tem gente que precisa ser odiada – e de forma concreta, enfática, intransigente. Há que se ter muito ódio para recomeçar Porto Alegre, porque é o ódio que sentimos de quem nos ameaça que nos dá forças para proteger quem a gente ama. E Porto Alegre, ainda que jamais esquecida do amor, parece concordar que o momento também é de odiar um bocado.
Isso a gente discute mais tarde. Mas não muito. Em breve.
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