Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Diário da Enchente

Inspirado no Diário da Pandemia – uma pessoa por dia, um dia de cada vez, iniciativa de Julia Dantas – o Diário da Enchente reúne relatos sobre a maior tragédia climática do Rio Grande do Sul. Editado por Luís Felipe dos Santos (@lfds85) e Raphaela Flores (@rapha_donaflor). Foto: Isabelle Rieger.

As ausências inesperadas, por Francisco Luz

*Texto enviado em 25 de maio

“Tenho muita sorte: aqui não deu nada, nem comigo nem com a família.” Essa virou minha frase padrão nos últimos todos os dias sempre que alguém mandava uma mensagem para perguntar como eu estava, fosse para amigos e amigas de fora do RS, fosse para quem estivesse por aqui – quase sempre em situação pior do que a minha.

“A parte central de Novo Hamburgo tá praticamente ilesa”, continuava, pra depois falar de conhecidos que tiveram de sair de casa e ainda não tinham voltado. Fosse qual fosse o dia em que falei sobre isso, esses conhecidos todos ainda não voltaram pra casa.

A indignação com o absurdo de ver cidades que fazem parte da minha vida desde sempre debaixo d’água por vinte e tantos dias obviamente mexeu com a cabeça. Mas não fui uma vítima das enchentes: nunca faltou água, nunca faltou luz, nunca fiquei ilhado nem precisei sair correndo de lugar algum. Não tinha nenhum direito de reclamar enquanto via tanta gente querida diretamente impactada pelo descaso, pelas escolhas e pela incompetência de todos que vêm brincando de dilapidar o estado e Porto Alegre há dez e vinte anos.

O “tenho sorte” é, sempre foi, uma constante por aqui, em diversos episódios envolvendo todo tipo de assunto. Brinco que nunca jogo na Mega-Sena porque já gastei toda sorte na largada, nascendo na família e nas famílias em que nasci. Por uma série de pequenas escolhas completamente aleatórias feitas muito antes de mim, as coisas costumam ‘funcionar’ mesmo sem eu ter nenhuma influência nisso: desde os dois lados da família com grande maioria de colorados em uma cidade não tão propensa a isso a contar com uma tia-bisavó que é mais nova do que meu vô, foi para a Argentina porque se enturmou com um carinha há tantos anos, casou, teve três filhos que não são muito mais velhos do que eu e garantiu a chance de conhecer Buenos Aires desde pequeno, sempre com um lugar para ficar.

Ter sorte no geral é muito bom e eu recomendo, mas até isso tem seus poréns pela falta de costume. As rasteiras que surgem são sempre inesperadas e te pegam sem saber o que fazer, sem ter como reagir no momento em que realmente tu precisa estar ao lado de alguém querido.

Meu primo Elvio, um dos argentinos da família, fez 51 anos no domingo passado, dia 19. Ele e a Carla, gêmeos, e fiz questão de mandar mensagens a ambos, como sempre fazemos nos cumpleaños de cada um. Ele foi um dos que recebeu a resposta que abre este texto quando ligou, preocupado, no início de maio para saber como estava a situação por aqui. Ficamos uns 15 minutos conversando sobre a chuva, as enchentes, meus avós, alguns chistes de família, como estavam todos por lá, sobre o longo tempo em que não conseguimos nos visitar por causa da pandemia, por dinheiro, pelo que fosse, já que ele, o Carlito, a tia Dina, a Carla, o Hugo e as crianças não vinham ao Brasil há anos. “Se vierem agora, vamos ter que pegar vocês de barco, só avisem”, brinquei.

Meu primo Elvio morreu nesta sexta, dia 24. Infarto ou AVC, não se sabe ainda. Ele morava com a minha tia e estava em casa quando ela foi comprar carne no mercadinho que fica dentro do condomínio que conheço desde que nasci. Quando ela voltou, viu o filho mais novo caído no chão, com uma cara serena de quem estava dormindo. É o tipo de coisa inesperada e inexplicável, que te arranca o chão dos pés pelo impacto ao saber disso – e que depois te rasga por dentro ao tu pensar na tristeza profunda da Dina perder um filho assim, da Carla ao perder um gêmeo assim, de como eles são uma família pequenininha por lá, já que meu tio era filho único. Sempre foram as pessoas mais queridas e carinhosas do mundo, e mereciam que nós, os muitos parentes daqui, tentássemos retribuir esse carinho todo.

Meu primo Elvio morreu e ninguém tem como estar em Buenos Aires neste sábado pra chorar a perda dele ao lado da Dina, do Carlito, da Carla, do Hugo, do Juli e da Sofí. Na hora em que eles mais precisam de nós, o Rio Grande do Sul está ilhado há mil dias e impede que a gente possa estar presente, gastando o que fosse em voo, de ônibus ou de carro para que pelo menos alguém fosse de representante, para dar o mesmo carinho que sempre recebeu. Uma ausência causada por culpados muito fáceis de apontar, que só vai ampliar a ausência dele aqui no nosso lado.

Da maneira mais inesperada possível, a água que não chegou à parte central de Novo Hamburgo chegou pra mim. E o maio de vocês, como foi?

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