Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Diário da Enchente

Inspirado no Diário da Pandemia – uma pessoa por dia, um dia de cada vez, iniciativa de Julia Dantas – o Diário da Enchente reúne relatos sobre a maior tragédia climática do Rio Grande do Sul. Editado por Luís Felipe dos Santos (@lfds85) e Raphaela Flores (@rapha_donaflor). Foto: Isabelle Rieger.

Um luto não superado, por Nelsa Nespolo

Dia 4 de maio foi um dia muito agitado na Vila onde moro. Temos um arroio que cerca parte de nossa comunidade e, de manhã, por ser um sábado, todos olhávamos para as águas desse arroio como se ele fosse o medidor de nossa futura desgraça. Impressiona ver que as caixas de esgoto borbulhavam água com muito volume. O arroio não transbordou, e a enchente veio pelo outro lado, chegando lentamente, e todos os moradores saindo de casa. 

Contratamos um caminhão e retiramos o que pudemos de malha da Justa Trama. Às 19 horas, fomos olhar na ponta da Rua Magistério, e a água vinha até a calçada da segunda casa.

Voltamos decididos a ficar aguardando. Meu genro Mateus nos ligou três vezes para sair e, por fim, minha filha Gabriela nos ligou chorando. Por isso, pegamos uma muda de roupa e fomos dormir na casa deles.

A saída de casa foi dolorida, chorei o caminho todo, sobretudo porque a água já havia tomado conta da Rua Veneza, e foi preciso alterar o trajeto.

Na manhã de domingo, dia 5, nossa casa, nossa Vila, estava invadida pelas enchentes e as casas cheias de água. A nossa encheu 60 centímetros. Outras até o teto – a visão do desespero e do horror. Só barcos circulavam.

Não dá para imaginar, não cabe isso em nossas mentes. As ruas que sempre andamos, nada mais possível. A foto da casa cheia de água foi desesperadora. Porém a água chegou só até o cordão da calçada da cooperativa, como se a mão de Deus a tivesse segurado.

Então, transformamos a dor em busca de apoio para a comunidade. Buscamos com entidades, empresas, amigos formas de vir doações, e a cooperativa virou um grande centro de recebimento e distribuição de doações para nossa comunidade.

Todos os dias de manhã, eu ia à cooperativa e voltava à noite para a casa da Gabriela. Sem luz durante 20 dias, atendíamos até escurecer. E assim se misturou dor e doação.

Quando a água baixou, a casa virou um lugar estranho e sem vida. As flores morreram, a horta destruída. Os móveis inchados ficaram destruídos porque nenhum resiste a 20 dias na água e no esgoto. As paredes marcadas. Foram dias colocando entulhos na calçada. Sim. Tudo virou entulho. Nossas cartas, diário dos filhos, memórias de nossas histórias e lutas. Fitas, CDs, tudo virou lixo. As lágrimas de todos os moradores se transformaram em mais chuva.

O reencontro com cada um foi sempre um abraço de choro e muita tristeza. 

A primeira noite que voltamos para casa, ainda sem luz, foi das piores de nossas vidas. Uma rua da solidão e da escuridão.

O silêncio da morte, como se fossemos os únicos sobreviventes. Nenhum cachorro latindo, nenhum morador passando, nenhum grito, nada.

As ruas se transformaram em um cenário de guerra, cheias de escombros, camas, colchões e armários, que ficaram dias e dias expondo as lembranças, as histórias e economias de uma vida toda.

Hoje, há mais de 30 dias, já com luz, a cooperativa Justa Trama voltou a produzir. Cadastramos todas as famílias que apoiamos – são 1.050 famílias de nossa Vila Nossa Senhora Aparecida. Temos e sabemos o que perderam, o que precisam, quantas pessoas são em cada casa e qual a situação quanto ao trabalho. 

Toda nossa e minha dor foi sufocada, um luto não superado, mas abafado para dar espaço à solidariedade e à reconstrução dessa Vila que faz parte da minha e de nossas vidas.

Fotos: Nelsa Nespolo

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