Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Diário da Enchente

Inspirado no Diário da Pandemia – uma pessoa por dia, um dia de cada vez, iniciativa de Julia Dantas – o Diário da Enchente reúne relatos sobre a maior tragédia climática do Rio Grande do Sul. Editado por Luís Felipe dos Santos (@lfds85) e Raphaela Flores (@rapha_donaflor). Foto: Isabelle Rieger.

Comadres

Mãe, no sonho eu entrei no supermercado e ali na parte onde ficam as frutas estava cheio de produtos de limpeza. Todo o supermercado só tinha produtos de limpeza. Olhei um cara, parecia que estava louco, bebendo numa garrafinha de detergente.

Meu filho sonhou isso depois que todo mundo correu para estocar mantimentos. Chegamos no super com a ingênua pretensão de comprar cinco litros de água mineral. Todos os cestos e carrinhos ocupados, pessoas andando rápido, procurando algo. As prateleiras vazias, uma senhorinha parada e um homem feroz, anda, porra. Gritou igual alguém com dor de barriga esperando na fila do banheiro. O menino paralisou junto com a velhinha e pediu para irmos logo embora dali, disse que aquele cara era um idiota. Repetiu a palavra idiota umas dez vezes, cuspindo a letra i. Conseguimos uma garrafa de um litro e meio de água e fomos pra casa.

Havíamos nos mudado há duas semanas, e estava combinado de um senhor montar o armário, mas imaginei que não viria por causa da chuva. A surpresa quando ele chegou pisando firme, ocupando metade da sala (que é espaçosa), carregando duas caixas de ferramenta gigantes. Finalizou e meu filho empolgado foi testar. O trabalho estava mal feito, era difícil abrir as gavetas. O homem disse que o menino não estava fazendo direito, desse jeito vai quebrar, guri, é assim, ó. E arrancou um pedaço puxando com força. Refez uma parte da montagem, suando, intencionando movimentos de quem está fazendo um favor, de quem está dando mais do que recebendo. Eu queria jogar ele pra fora da minha casa, mas esperei, paguei, e quando saiu foi um alívio. Estamos até hoje sem portas, pois elas também ficaram desencaixadas.

Fim do dia arrumamos as roupas no armário e depois fomos jogar canastra. Eu estava ganhando e no momento que completei uma sequência e fiz a dancinha da alegria, meu filho se irritou e me empurrou. Perguntou se eu estava rindo da cara dele. Naquele momento enxerguei seu pai, nos dias que o menino não obedecia, e corria, e ria e fugia. E o homem, com raiva, segurava com força e dizia, está rindo de mim? Falei isso com o menino, ele chorou e pediu colo, pediu desculpas e perguntou se todos íamos morrer. Eu disse que não, que a gente ainda ia viver muito, até os cem anos. Ele tentou tomar um último banho, mas já ficamos sem água, foi o primeiro dia dos outros vinte subsequentes. Nossa estação, que naquele momento descobri que se chama Moinhos, foi a última a voltar a funcionar.

De manhã chegaram no apartamento ao lado Letícia Tábata e seu filho de dez anos, idade do meu. Perderam a casa no bairro Sarandi e vieram passar uma temporada aqui, na casa da patroa de sua mãe. O apartamento estava vazio, então foi preciso organizar coisas básicas para um lar: cama, fogão, geladeira. Conseguimos tudo, entre vizinhos e redes de apoio de voluntários, só não tinha água. Mas o clima era de trabalho coletivo e íamos conseguindo baldes e galões do escritório de um, da torneira da praça, da piscina da vizinha.

Quando dava íamos na praça com os meninos, eles jogando futebol e nós tomando chimarrão e conversando. Ela me contou que fazia um ano que tinha se separado de uma relação violenta, e foi morar nos fundos da casa de sua mãe. Estava se reerguendo e ainda pagando as prestações dos eletrodomésticos que foram levados pela água. O pai do menino mudou para outra cidade e ela contou, com orgulho, que ele às vezes mandava algo de dinheiro. Eu disse que era obrigação dele mandar sempre, e fiquei com medo de ter sido ríspida, mas ela simplesmente não respondeu e seguiu conversando e me fazendo perguntas. Eu também contei de quando tive que pedir socorro pra polícia, de quando ele quebrou a porta de casa, de quando me bateu, de quando brigou na rua e levou uma facada e nós sofremos ameaças. Mas quando perguntou em que cidade eu morava antes e descobriu que ele era europeu, perguntou: Mas não tem mesmo como consertar? Ela contou que amava lentilha com aquela calabresa fininha. Eu disse que também, e uma farofa bem torrada. Ela disse que gostava de ficar sozinha, por isso dormia tarde. Aproveitava quando o menino ia dormir. Eu disse que também, mas acordava cedo, antes dele. Ela disse que gostava de escrever. Eu disse que também.

Os meninos passavam algumas tardes comigo enquanto eu trabalhava no computador. Às vezes não podia evitar escutar algumas conversas:

–  Esse é o vilão.

–  Tá. Ele é o cara que deu uma facada no Bolsonaro.

–  Mas aí não é vilão, ainda bem que deu a facada.

–  Que horror.

Quando meu filho escuta algum comentário a respeito de uma pessoa ruim ele pergunta: Mas é tão ruim como Bolsonaro? Atualmente o prefeito de Porto Alegre poderia entrar no time dos vilões.

Deixei lentilha de molho e no outro dia fiz na panela de pressão, com linguicinha, cebola e cheiro verde refogados, batata bem picada. Ela trouxe bolo de cenoura. Depois fiz cachorro quente. E ela sopa. Saí com as crianças e no meio do jogo de futebol meu filho caiu de cabeça no chão. Gritava ais agudos e pedidos de socorro. Uma bola vermelha na parte de trás da cabeça. Fomos pra casa correndo, deixei o menino com sua mãe, coloquei gelo no hematoma e chamei minha irmã que é médica, o que eu faço? Muito gelo e observa. Daqui a pouco ligo de novo para saber notícias. Que bom que ela está perto, pensei, meu filho no colo, dizendo que ainda sentia dor, mas estava melhor, imagina se piora, como estarão os hospitais agora? Como será, no meio da tragédia, chegar com ele, com a cabeça machucada, o que será que está acontecendo ali? E se ele desmaiar agora? E se não der tempo de chegar? E se eu não for capaz de carregar ele desacordado? Mas o gelo resolveu e só sobrou um pequeno galo.

Os dias foram passando e a água não voltava. Meu vizinho ainda tinha no escritório e estava abastecendo quase todo mundo, mas estava ficando insustentável. Decidi buscar outra solução no momento que meu filho aos prantos pediu desculpas por ter feito coco no vaso, tinha esquecido que era para fazer dentro da sacola. Por sorte na casa da minha irmã a água voltou e ela nos chamou para ficar lá.

Num dia que vim arrumar minha casa e buscar algumas roupas, Letícia Tábata tocou a campainha. Trazia uma pasta rosa transparente, com um texto escrito à mão. Ela disse que tinha tentado escrever sobre a sua experiência na enchente e queria compartilhar comigo. Agradeci e disse que ia ler daqui a pouco. Era um texto informativo bem escrito, contando os mesmos fatos dos jornais, com a diferença que o foco estava nos bandidos que estavam roubando as coisas das pessoas desabrigadas. Finalizou com uma frase bem parecida com bandido bom é bandido morto, mas não era bem isso. Chamei na sua porta, lhe dei um pacote de erva mate e disse que o texto estava bem escrito, mas tinha ficado com vontade de saber como tinha sido para ela. E se um dia ela escrevesse mais sobre o que passou na enchente, gostaria de ler. Nos despedimos.

2 respostas para “Comadres”

  1. Avatar de Nicolás Monasterio
    Nicolás Monasterio

    Puxa, que texto forte. Muito verdaderio e bem escrito. Obrigado por compartilhar.

  2. Avatar de Marie Corbetta
    Marie Corbetta

    Muito bom esse texto, mesmo. Até fui olhar de novo para ver se não era da minha amiga. Tem a voz parecida com a dela Ela sabe quem é.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *